03/01/2011

JOSÉ ANTÓNIO SARAIVA


A democracia 
      é autofágica?


Muito se tem escrito e dito sobre o escândalo WikiLeaks. O ruído é tão grande que a páginas tantas as pessoas têm a cabeça em água, já não sabendo bem o que pensar.

Ora a primeira coisa a dizer é que o WikiLeaks não difere nada de outros escândalos políticos a que assistimos no passado.

Em que consistiu o Watergate, tão celebrado por jornalistas, comentadores e simples cidadãos em todo o mundo?

Na entrega a um jornal de grande tiragem de documentação secreta sobre factos ocorridos numa campanha para a Presidência dos EUA

O resto foi a bola de neve.

No Wikileaks passou-se aproximadamente o mesmo.

Alguém se apropriou ilicitamente de toneladas de material diplomático e, depois de uma primeira hesitação, entregou-as a quatro grandes jornais e a uma revista de vários países do mundo.

E os jornais trataram o material com os seus critérios e têm-no publicado da forma como entendem.

Por cá, ainda há bem pouco tempo tivemos um caso semelhante.

O SOL conseguiu obter em primeira mão documentação do processo Face Oculta, os seus jornalistas seleccionaram aquilo que consideraram de interesse público, esse material foi dividido em lotes e publicado com o enquadramento jornalístico que se considerou necessário para a compreensão do leitor.

Tal como sucedeu com o WikiLeaks, houve quem se indignasse com a publicação.

Mas será possível pedir aos jornais que têm acesso a documentação relevante para não a publicarem?

Não é possível: o papel dos jornais é publicar informação.

Podem discutir-se depois os critérios de selecção e publicação.

Pode questionar-se se determinado facto tinha ou não interesse público.

Pode questionar-se se o tratamento e o enquadramento jornalísticos foram bem ou mal feitos.

Mas essa é outra história.

No que respeita ao caso Face Oculta, por exemplo, o SOL seguiu um critério diferente do que tem sido usado no WikiLeaks: de um modo geral, não usámos opiniões de umas pessoas sobre outras, porque nos pareceu coscuvilhice de pouco interesse para o entendimento dos factos.

Mas, se é possível discutir isto, já parece impossível pedir aos jornais que não publiquem nada.

É contra a sua natureza.

Até aqui não parece haver grandes dúvidas.

E as opiniões que se têm manifestado a favor e contra a divulgação dos documentos têm mais que ver com as simpatias ou antipatias políticas dos opinadores do que com outras questões.

Alguém contestou a publicação pelo Washington Post dos documentos do caso Watergate?

Ninguém. E porquê?

Porque Nixon era um mal amado - e a esquerda (que é predominante na imprensa mundial) o detestava.

Tudo o que fosse para derrubar Nixon (ou, mais tarde, Bush) era legítimo.

E o mesmo aconteceu em Portugal: levantou-se a questão das violações do segredo de Justiça no caso Face Oculta, mas ninguém as condenou no caso BPN.

Porquê? Por razões políticas.

Há mais duas conclusões a tirar.

A primeira é que, com o desenvolvimento brutal dos meios tecnológicos, escândalos como o WikiLeaks serão cada vez mais frequentes.

A tecnologia serve para o bem e para o mal.

Estamos já na sociedade do Big Brother: somos vigiados pelas câmaras de vídeo nas ruas e nos estabelecimentos, sabem onde estamos através dos telemóveis (que são autênticas pulseiras electrónicas), controlam o que compramos através dos cartões de crédito, etc.

Os emails, as chamadas telefónicas e os sms são interceptados.

Já nada é secreto.

Bramar contra isto é lutar contra moinhos de vento.

Não tem qualquer utilidade.

A segunda conclusão a tirar é que mais uma vez se prova que as democracias são autofágicas.

Elas transportam dentro de si os instrumentos da sua própria destruição.

E colocam os regimes democráticos em situação de desigualdade em relação aos outros.

Porque é evidente que um caso destes, que atinge os Estados Unidos e os seus aliados, não poderia acontecer no Irão, na China ou mesmo na Rússia.

Assim, a nossa civilização vai-se fragilizando, corroendo por dentro, ficando à mercê dos seus inimigos.

E nós somos agentes dessa corrosão.

A transparência, que é um dos ex libris do mundo ocidental, acaba por voltar--se contra o nosso modo de vida, dando sucessivas cartas a quem o ameaça.

E isto não tem saída.

Não podemos impor as nossas regras aos outros - e não podemos travar este progresso que nos vulnerabiliza cada vez mais.

A democracia está à mercê dos próprios mecanismos que criou.

IN "SOL"
27/12/10

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