08/12/2010

FRANCISCO MOITA FLORES



Mortos por dentro

Para uns, foi crime. Para outros, acidente. E ainda hoje não sei. É o pior resultado possível. Não saber.

Eu estava lá nessa noite. Chegáramos de Cascais, o meu amigo Luís Rendeiro e eu, depois de prendermos dois assaltantes que haviam roubado a casa do Raul Indipwo, do Duo Ouro Negro. Metemo-los na zona prisional e fomos ao Piquete, onde o nosso Chefe Lourenço Ferreira comandava os polícias que estavam de serviço. Eram mais ou menos oito horas. A noite estava fria e a maioria dos colegas ou estava na rua, investigando crimes e catando criminosos, ou jantava à volta da PJ. Ficámos na conversa. O serviço de Piquete é isto ao longo das 24 horas. Os dias nunca são iguais. Por vezes, começam a chegar dezenas de notícias de crimes que põem o pessoal em alvoroço desde as oito e meia da manhã e não deixam ninguém em paz até à rendição no dia seguinte à mesma hora. Noutra vezes corre mole, sem que os telefones toquem, indolentes, com uma mansidão que se torna insuportável.

E de repente, a qualquer hora, os telefones começam a crepitar e tudo se transforma em vendaval de trabalho. Nunca percebi a regularidade da vida do Piquete, talvez porque vive tão perto do pulsar da vida que nada é previsível. Uma semana sem homicídios. De repente, num só dia quatro homicídios. Uma semana sem assaltos à mão armada. E, de repente, uma semana com vinte assaltos à mão armada. Um verdadeiro ruído de vida e morte que escapa a qualquer previsão.

Nesse tempo havia uma bateria de telefones no Piquete. Talvez uns oito. Cinzentos, feitos de uma fibra que os tornava mais leves que os telefones vulgares e ligados à central da PJ. E havia um que era preto, dos antigos, pesados. Era o único ligado directamente à linha de emergência da PSP. Quando este tocava sabia-se que do outro lado vinha notícia de borrasca. E, de súbito, tocou. O Chefe atendeu. Lembro-me que nos pediu uma caneta para apontar a informação. Quando? Onde? Mas está a falar a sério? Dê-me a sua identificação. Não leve a mal, só que a notícia….sim, obrigado. Vou mandar o meu pessoal. Ficámos alerta. Pousou o telefone. Olhou--nos e disse: acaba de cair um avião com o primeiro--ministro e o ministro da Defesa a bordo. O Piquete saltou da preguiça. Todas as equipas para Camarate! O resto é do domínio público.

A investigação continuaria já longe dos nossos olhos. Para uns mal feita, para outros bem feita. Para uns, foi crime. Para outros, acidente. E ainda hoje não sei. É o pior resultado possível. Não saber. E sei que isso deixa mortos por dentro todos os verdadeiros polícias que não se conformam com dúvidas. E gostaríamos de saber! 

Professor Universitário

IN "CORREIO DA MANHÃ"
05/12/10

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