29/12/2010

CATALINA PESTANA




Um suave milagre




A velha senhora conhece-os pelo nome, e eles conhecem o seu. Na maioria são doentes de Alzheimer, bem cuidados.

A velha senhora acorda e adormece nos últimos dias com a mesma imagem sonora, adquirida no tempo em que era menina:

«Entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel».

O som que ouve dentro de si é emitido pela voz da professora de Português, que marca as frases d O Suave Milagre, de Eça de Queiroz, como se de verso se tratasse.

- Escutem o ritmo. - e repetia, batendo levemente na mesa.

O conto é poesia mesmo.

A velha senhora acorda e adormece a pensar naquelas palavras que lhe ficaram guardadas na memória há mais de 50 anos - e agora emergiram com a força de quem parece ter alguma coisa nova para dizer aos outros.

Fez silêncio para poder escutar o que a memória teimava em dizer-lhe e ela ainda não conseguira perceber.

Naquela tarde era dia de festa numa casa de repouso, que devia chamar-se Unidade de Cuidados de Saúde Continuados e devia pertencer ao Serviço Nacional de Saúde.

Os utentes são maioritariamente doentes de Alzheimer, classe média, bem cuidados, a um preço incomportável.

A velha senhora conhece-os pelo nome, e eles conhecem o seu. Não sabe se mais alguma coisa fica naquelas memórias fragilizadas. Todos, ela e eles, se comportam como se ficasse.

A D. Cristina, mais de 70 anos, foi muito bonita, tem ainda uma pele acetinada, e visitas amiudadas vezes. A filha, as irmãs, alguns netos. Sorri serenamente a todos, enquanto dobra e volta a dobrar o guardanapo que cobre o copo de água, que leva à boca muitas vezes durante o dia.

Só dá sinais de conhecer um neto, homem jovem já casado e com filhos, sereno e belo. Não há fim-de-semana que ele não vá lá.

E os olhos de D. Cristina riem, como os da mãe sofrida d O Suave Milagre.

Nem sempre fala. Mas ele e ela comunicam de uma forma muito forte e especial - e quando ele sai fica um vazio que todos os outros apreendem.

Quem estiver atento dá-se conta de que a presença dele lhe traz as melhores memórias da sua vida, apesar da doença avançada.

Os grupos de animação começaram a cantar folclore português, antigo, autêntico, cobrindo várias regiões do país.

Passado pouco tempo, algumas bocas precocemente envelhecidas trauteavam memórias distantes de festas vividas.

Alguns dos presentes não sabem quem são. Mas há momentos como aquele, de suave milagre, em que a velha senhora deixou de ouvir a primeira estrofe do conto da infância e lhe pareceu ouvir alguém balbuciar: «Regressa e lembra-te».

Parece-me, pelo que escuto e olho, que a par de muitas hipocrisias natalícias andam por aí anjos vestidos de gente a desafiar-nos para ensaiarmos pequenos milagres.

Pequenos milagres como aquele que o presidente da Junta de Freguesia da Cruz Quebrada-Dafundo está a ensaiar para a noite da consoada.

Primeiro mobilizou a capacidade de partilha de todos os que querem partilhar. Depois desafiou todos os fregueses para se inscreverem numa ceia de Natal colectiva, onde não se sabe quem dá e quem recebe.

Cada um tem apenas de levar para a troca uma prenda simbólica. Não é hábito. Se calhar ainda não estamos suficientemente maduros para trocar o conforto da nossa casa pelo calor colectivo duma ceia partilhada.

O desafio está feito. Saibamos nós aceitá-lo.

IN "SOL"
27/12/10

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