24/11/2010

RICARDO ARAÚJO PEREIRA







Foram não sei quantos mil cineastas que tombaram pelo Chile

O realizador do filme, Leonardo Barrera, declarou que "a intenção não é mostrar uma tremenda orgia no ecrã", mas sim "fazer algo simpático". Ao que este mundo chegou. Creio que o leitor concorda comigo: é perturbador constatar que, para um realizador de filmes pornográficos, uma tremenda orgia não seja algo simpático. O que pode haver de mais simpático do que o convívio? O que falta, em simpatia, à galhofa? Quem encontra seja o que for de antipático, meu Deus, na ribaldaria?

A notícia do lançamento de um filme pornográfico baseado na história dos 33 mineiros chilenos que ficaram soterrados deveria encher-nos a todos de alegria. Mais uma vez, a indústria pornográfica demonstra que é das mais competentes, das mais rápidas a reagir aos desafios que a modernidade lhe coloca, além de continuar a ser das menos poluentes. É uma indústria que produz películas que fazem sonhar com um mundo melhor, um mundo em que talvez haja mais problemas de canalização do que no nosso, mas em que os canalizadores recebem uma justa recompensa. São filmes que, muito mais do que os de Walt Disney, nos introduzem num mundo de fantasia e nos reconciliam com a vida - por muito que Walt Disney tenha tentado incluir, nas suas histórias, elementos claramente roubados ao imaginário pornográfico, como anões, donzelas cândidas que, no entanto, beijam o primeiro príncipe que lhes aparece na floresta, ou animais de quinta.

Apesar de tudo isto, não posso deixar de manifestar o mais profundo desagrado relativamente a este projeto acerca dos mineiros chilenos. De acordo com o Expresso, o filme será protagonizado pela atriz chilena Ana Karenina. Até aqui, tudo bem. A fusão da grande literatura russa com o mundo da pornografia já tem produzido resultados muito felizes, e quem viu o êxito Guerra e Pás, Pás, Pás! sabe do que estou a falar. No entanto, segundo adianta ainda o Expresso, o realizador do filme, Leonardo Barrera, declarou que, e cito, "a intenção não é mostrar uma tremenda orgia no ecrã", mas sim "fazer algo simpático". Ao que este mundo chegou. Creio que o leitor concorda comigo: é perturbador constatar que, para um realizador de filmes pornográficos, uma tremenda orgia não seja algo simpático. O que pode haver de mais simpático do que o convívio? O que falta, em simpatia, à galhofa? Quem encontra seja o que for de antipático, meu Deus, na ribaldaria? O ignóbil Leonardo Barrera prossegue manifestando a intenção de "ocupar toda a história dos mineiros com uma crítica social". E, não satisfeito, conclui: "Gostamos de fazer filmes com argumento." Talvez eu seja bota-de-elástico, antiquado, puritano, enfim, tudo o que quiserem, mas gosto da minha pornografia sem crítica social, e da minha crítica social sem pornografia. Embora não seja tão inflexível em relação à segunda. Que ninguém denuncie a vileza deste homem é mais um sinal de que a sociedade contemporânea perdeu a capacidade de se indignar. 

IN "VISÃO"
18/11/10

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