04/11/2010

DANIEL OLIVEIRA



A dieta

O Estado é gordo. É isto que temos ouvido vezes sem conta. Tantas vezes dito por gente que, de uma forma ou de outra, viveu quase sempre à sombra dele. Como os católicos não praticantes, só se lembram de Deus na hora do sufoco.

Agora, que vai haver cortes a sério, é que vamos tirar a prova dos nove. Veremos se o sector privado vai finalmente gastar qualquer coisa que se veja em investigação e desenvolvimento quando não tiver as universidades públicas para fazer esse trabalho. Quero ver se as empresas começam a usar a lei do mecenato à cultura porque isso lhes dá prestígio.

Quero ver se em vez de mamarrachos encomendados a engenheiros do gabarito de José Sócrates vai haver encomendas dos privados a arquitetos que não destruam a paisagem. Quero ver os hospitais privados a tratarem do que é caro e dá prejuízo. Empresas a apagar fogos. A garantir escolas economicamente acessíveis. E quero ver os privados a contratar as pessoas mais qualificadas deste país.

É que não é por acaso que a média salarial no Estado é mais alta do que no privado. Grande parte dos mais escolarizados é para lá que vai. A maioria das empresas, em Portugal, prefere o que é barato e descartável.

Agora sim, vamos poder ver as maravilhas do Estado mínimo que nos andam a vender há anos. Quando faltarem polícias na rua, não resmungue. Quanto não houver meios para combater os fogos, não se indigne. Quando as escolas e cresces fecharem, as universidades se transformarem em depósitos ainda mais inúteis e não houver gente qualificada para trabalhar em lado nenhum, sorria.

Quando fecharem os centros de saúde e comprar medicamentos para ficar vivo for um luxo, não se apoquente. Morra sabendo que o Estado sempre foi o culpado de todos os nossos males. E maravilhe-se com a sua elegância depois de uma boa dieta.

O que me espanta, o que sempre me espantou, é haver tantos, entre os que devem à maternidade pública o seu nascimento seguro, à escola pública quase tudo o que sabem, à universidade pública a sua ascensão social e cultural, ao Estado a sua segurança e ao hospital público a sua sobrevivência, a pedirem o seu emagrecimento.

Uns são apenas egoístas: garantida que está a sua condição, os outros que façam pela vida. Outros são só parvos. Esses vão ver agora como elas mordem.
'Passos perdido'

Passos Coelho cavou uma trincheira: só viabilizaria o orçamento se não houvesse aumento de impostos. Uma trincheira impossível, se, como acontece com o PSD, se defender um orçamento de austeridade. Depois recuou: aceitaria o aumento de impostos em condições impossíveis sem que, no entanto, todas as condições fossem obrigatórias. Sendo que todas levam à redução das receitas sem haver propostas dignas desse nome para cortar na despesa.

E é normal que não haja: depois de tudo o que se cortou, sendo o grosso das despesas do Estado em salários e pensões e já tendo sido anunciados cortes nos ordenados dos funcionários públicos, resta ir aos rendimentos dos reformados.

Assim, se Sócrates não ceder em toda a linha, Passos Coelho enfiou-se num beco sem saída: ou chumba o orçamento e a sua liderança fica a prazo, ou viabiliza-o, nunca mais ninguém acredita nele e a sua liderança fica prazo. Foi ele que escolheu este caminho. Já sabíamos: a política não é para amadores.

IN "EXPRESSO"
28/10/10

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