09/11/2010

ANTÓNIO MARINHO E PINTO


A interpretação das leis

O Governo anunciou recentemente a intenção de «simplificar» a linguagem das leis para, aparentemente, as tornar mais compreensíveis pelo cidadão comum. Esse anúncio, pomposamente baptizado de «simplegis», traduziu-se em mais uma acção de propaganda e de demagogia, pois anunciava-se, expressamente, que as pessoas iriam poupar muitos milhões de euros, já que deixariam de ter necessidade de consultar advogados para que lhes explicassem o significado das normas legais.
Numa argumentação meramente retórica, poderia dizer-se que o Governo reconhece que está a fazer mal uma coisa que deveria fazer bem, ou seja, legislar. Mas, em vez de, discretamente, a começar a fazer bem, anuncia urbi et orbi que o vai fazer. Ou seja, em vez de passar a fazer rapidamente o que já deveria estar a ser feito há muito, diz que vai fazer. Esta necessidade de auto propaganda gera sempre dúvidas sobre as intenções de quem a usa.
Mas, para além desse aspecto formal (não falamos do conteúdo normativo das leis), o que subsiste de relevante nessa medida é a anunciada intenção de o governo publicar, juntamente com os diplomas legais, resumos explicativos dos seus conteúdos normativos. Ou seja, juntamente com a publicação de um diploma legal, o Governo propõe-se publicar a sua interpretação desse diploma. Ora, isso é perigoso e pode acarretar problemas de vária ordem.
A interpretação das normas legais só pode ser feita pelos tribunais, os quais não estão vinculados a quaisquer outros entendimentos sobre a matéria. A interpretação de uma lei não pode ser feita em abstracto por quem quer que seja, muito menos pelo legislador. Ela só pode ser feita em concreto pelo juiz e em obediência ao princípio do contraditório, ou seja, depois de ouvir e confrontar as várias interpretações dessa lei feitas pelas partes interessadas na sua aplicação.
Mesmo quando os próprios tribunais divergem na interpretação de uma lei, acaba por ser o tribunal supremo a fixar em definitivo a interpretação, através dos chamados acórdãos de fixação de jurisprudência. É, pois, a jurisprudência que fixa o genuíno sentido normativo das leis e mais ninguém.
Porém, o que sucede em Portugal é que poucas leis são aperfeiçoadas pela nossa jurisprudência porque elas estão sempre a mudar e não duram o tempo suficiente para serem objecto do labor interpretativo dos tribunais. E isso é também um dos males de que padece a nossa justiça.
Quando um órgão soberano se propõe «explicar» as leis que elabora está a usurpar uma função que a constituição da República atribui em exclusivo a outro órgão (os tribunais) e, como tal, está a violar o princípio da separação de poderes.
Já por várias vezes critiquei os magistrados por se insurgirem publicamente contra certas e determinadas leis. Nenhum magistrado pode interferir com a feitura das leis, pois isso consubstancia uma violação do princípio da separação de poderes. Mas não é menos violador desse princípio pretender que o legislador interfira com a interpretação das leis.
O legislador, seja o Governo, seja o Parlamento, seja outro órgão qualquer, deve preocupar-se em fazer leis rigorosas do ponto de vista de normativo e redactorial. Uma lei bem feita será sempre bem interpretada por todos e, mais do que isso, será sempre entendida mesmo pelas pessoas com níveis culturais mais baixos. E isso traz segurança jurídica.
O problema é que ser simples é muito complicado. Geralmente, só usa uma linguagem simples quem sabe muito. Só os sábios são, na sua simplicidade, rigorosos e entendidos por todos. Os medíocres são em regra banais e frívolos e, por isso, preferem uma linguagem rebuscada e gongórica, justamente, para esconder as suas limitações.
Por outro lado, convém salientar que, em Portugal, a qualidade da função legislativa desceu para níveis intoleráveis. A qualidade técnica das leis é péssima, a sua redacção viola, por vezes, as elementares regras da sintaxe e, em algumas leis, chega mesmo a haver erros ortográficos.
Noutros tempos, quando consultávamos um código e surgiam dúvidas sobre o sentido de uma norma, procurávamos o Diário da República para tirar as dúvidas. Hoje, infelizmente, não se pode confiar nem no Diário da República. Quando é publicada uma lei temos de esperar alguns dias pelas inevitáveis rectificações e, por vezes, mais alguns para que as próprias rectificações sejam corrigidas.
E isso acontece porque a tarefa legislativa está entregue a pessoas que não são as mais preparadas para tal. E também por isso a linguagem legal não é simples nem rigorosa.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
06/11/10

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