18/10/2010

U H F



DE UM CRÍTICO DE MÚSICA
(com a devida vénia)

UHF - Porquê? (2010)

Após a euforia dos anos loucos, com os jipes a tomarem conta de Portugal, numa corrida ao novo “el dorado” em que o dinheiro fácil de Bruxelas foi pródigo, vivemos anos sucessivamente complicados numa sequência que já ultrapassa uma década de cinzentismo. Os sacrifícios vão aumentando – vão aumentar – e a Europa, que nos encheu de dinheiro, nos fez esquecer os bons hábitos da poupança e nos injectou com vícios consumistas, está agora a exigir rigor enquanto os mais ricos se preparam para sugar tudo o que possam. Portugal, em momento dramático, vê o Banco Central Europeu a emprestar, aos bancos, dinheiro a 1% para, depois, esses mesmos bancos, tal agiotas, multiplicarem o rendimento, vendendo-nos a massa a 6%. É assim o inferno europeu, em que, depois de nos pagarem para não produzirmos ou para afundarmos barcos, nos querem deixar sem tanga e escanzelados. A crise chegou à economia, mas, já tinha entrado em áreas sensíveis. As nossas instituições estão descredibilizadas, decadentes, a Justiça é considerada injusta, pantanosa e o povo está farto, cansado, descrente e sem garra para enfrentar o abismo. O naufrágio português está à beirinha e os UHF deram um passo em frente, viajando pela dura realidade do presente, numa abordagem corajosa, destemida, sem papas na língua e adequada a um povo valente e imortal. Foi, aliás, uma gravação premonitória porque os trabalhos de estúdio decorreram ao longo de quase doze meses e a edição surge no exacto momento em que as medidas mais duras foram anunciadas pelo Governo. O efeito de “Porquê?” começa na música e termina em palavras como aquelas que serviram esta introdução.

O novo álbum de estúdio dos UHF quebra um jejum de cinco anos e consegue surpreender pela agressividade, variedade e forma como António Manuel Ribeiro regressa a um estilo de escrita musical de onde tinha semi-hibernado. Faz muito tempo que nenhum artista português se aventurava pela música interventiva, directa, sem refúgios de qualquer espécie. António Manuel Ribeiro deixou de lado alguma contenção e lançou-se numa epopeia em que recupera o dedo em riste, muito próprio dos seus primeiros tempos de compositor, e que lhe granjeou fãs aos rodos e inimigos em quantidade razoável e duradoira.

Ao longo das últimas décadas, o topo do rock português aburguesou-se, começou a comer nos melhores restaurantes, a vestir a melhor roupa, a aparecer nas revistas cor-de-rosa, a dormir em hotéis de 5 estrelas e passou a compor um roque queque para adolescentes bonitos e bem comportados. A situação não é exclusiva de Portugal, recordo-me dos problemas existenciais de Bruce Springsteen após o sucesso de “Born in USA” porque não se sentia confortável a falar da pobreza quando passara a ser rico. Mas, o “Boss” soube seguir o seu rumo. Como homem do rock não se resignou a ser um mero empregado da música. Foi assim que renasceu diversas vezes, uma das quais com o tocante “The Rising”. Em Portugal, temos artistas a lançarem umas bocas em concertos, a gritarem palavras ocas de ordem contra o Governo, seja ele qual for, porque é popular e dá jeito, e a elogiarem a Autarquia que os contratou, por valores obscenos, com o dinheiro dos impostos pagos por todos nós, deixando cair de podre a cultura e o património local.

Com “Porquê?” a revolução está próxima e, se existisse censura, este disco não tinha sido colocado à venda. E, para felicidade de alguns, António Manuel Ribeiro teria sido detido e interrogado. Ao contrário de muitas das recentes edições discográficas, em que o rock mergulhou na depressão nacional, “Porquê?” regressa ao espírito do rock puro e duro. A escrita das canções cruza momentos brilhantes em temas tão fortes como polémicos. Tudo normal. Não deve ser o rock intrinsecamente polémico, agitador, rebelde e provocador?

Poderia entrar numa descrição faixa-a-faixa, contudo, deixarei essa tarefa para quem consiga reduzir “Porque?” a um conjunto de 12 temas. Não o farei porque a essência é o álbum. Mesmo assim, não resisto a escrever a respeito de quase todas as músicas.

A surpresa de “Porquê?” começa logo na primeira faixa. “Nativos” é António Manuel Ribeiro como o imaginara num disco a solo, experimental, em tons independentes e alternativos. É ele próprio que toca precursão africana e uma enigmática precursão ameríndia cordame enquanto declama de forma intensa e furiosa que “se o coração conhece enganos / aceita a vida / sai da batalha”. O mote está dado com esta entrada enérgica e contundente. A canção seguinte descomprime o ambiente e liberta doses pop-rock com um riff de guitarra à UHF. “Viver para te ver” tem todas as condições para ser o novo single e entrar nas playlists das rádios. A letra é própria de tempos primaveris, a melodia é comercial e o refrão orelhudo.

Muitos daqueles que criticam os UHF não gostam que o grupo grave versões. Mais uma vez, deve ser uma idiossincrasia lusitana, pois, aceitamos bem que os artistas estrangeiros recuperem canções mais antigas, porém, quando em Portugal isso sucede os músicos são, geralmente, acusados de oportunismo, de ganância e de crises de criatividade. Conhecendo a realidade do meio musical português, esperava, apenas, uma versão neste CD, todavia, surpreendentemente, os UHF apresentam-nos duas. Tendo em conta o preconceito existente, admito que tive dúvidas sobre a pertinência de tal decisão, contudo, basta escutar o álbum para compreender a coerência da escolha. A versão para “Vejam bem” demonstra que UHF e as canções de José Afonso são uma óptima combinação. Já acontecera no passado e voltou a suceder. Um notório respeito pelo compositor, a forma emotiva como António Manuel Ribeiro a interpreta, uma guitarra límpida que poderia ser de Hank Marvin, enfim, uma obra de arte. Aposto que “Vejam bem” acabará por sair em single, pois, é impensável ter uma pérola destas num álbum e não a expor ao grande público. A outra versão já é sobejamente conhecida. “O vento mudou” colocou, novamente, na ribalta, um sucesso que tem tanto de antigo como de relevante. Eduardo Nascimento ficou emocionado e vimos Nuno Nazareth Fernandes, o compositor, com uma lágrima no canto do olho num espectáculo a que assistimos na FNAC de Almada. Portugal não pode ignorar a sua história musical continuando a valorizar, sobretudo, aquilo que vem lá de fora. A produção nacional dos últimos 60 anos é relevante e de enorme qualidade e urge voltar a descobrir as nossas cantigas. A recuperação de “O vento mudou” ou de “Vejam bem” é um acto cultural importante para um legado que deve ser redescoberto pelas novas gerações.

“Quero entrar em tua casa” é mais um tema rock com um refrão fortíssimo. Gosto particularmente da bateria do Ivan Cristiano e, talvez por outros sucessos passados, recordo o melhor de Zé Carvalho e de Luís Espírito Santo. Dei por mim, esta manhã, sem motivo aparente, a trautear este perigoso refrão.

“Porquê (português)” surge como a faixa 7 e duvido que seja um fruto do acaso essa numeração. São sete as cores do arco-íris, sete os sábios gregos, sete as virtudes humanas que a Filosofia identifica e sete os dias da semana que percorremos, freneticamente, em ciclos de rotação constante. “Porquê / é a pergunta / que o povo faz / com amargura” afirma António Manuel Ribeiro, enquanto discorre diversos porquês numa canção acutilante e de onde sobressai um ritmado lado acústico com recurso ao acordeão, pandeireta e clave. O refrão é poderoso e sintetiza um sentimento que trespassa toda a obra, “Porquê / outra vez / o naufrágio português”.

Depois… bem, depois temos uma sequência final de arrasar. “A última prova”, “Cai o Carmo e a Trindade” e “Acende um isqueiro” são três temas que nos transportam para outros tempos.

“Acende um isqueiro” podia pertencer a qualquer um dos primeiros trabalhos dos UHF e ganha uma dimensão épica quando a comparamos com a versão gravada no Coliseu de Lisboa. “Vim aqui para cantar / e para vos conhecer / receber o que o povo dá / se o artista merecer”. Os UHF transformaram um acústico intimista numa grande canção rock dedicada a todos aqueles que marcam presença nos concertos e onde António Manuel Ribeiro plana na música num ambiente próximo de Jim Morrison. O baixo de Fernando Rodrigues, algures no minuto 3:30, evoca-me recordações de Carlos Peres ou de Fernando Delaere.

“A última prova” é UHF vintage com a presença de um endiabrado HammondB3, pelas mãos do convidado Manuel Paulo, que nos conduz para uma identidade sonora que funde as raízes dos UHF com linhas clássicas de rock impar. Pedagogicamente, esta canção devia sair no formato de single para que os mais novos tenham contacto com a sonoridade UHF em estado puro. As guitarras de António Côrte-Real fazem a junção histórica de vários guitarristas que passaram pela banda e, mentalmente, vejo Renato Gomes, Rui Rodrigues ou Rui Dias. A avaliação do trabalho de uma banda também se faz pela recordação da sua história e António Côrte-Real tem um desempenho notável neste disco. É essencial que se compreenda que este pode ser um excelente álbum dos UHF, quiçá, talvez mesmo o melhor de todos, porém, isso só sucede porque esta formação está a tocar como nenhuma outra o fizera no passado. “Porquê?” é também um marco individual nas carreiras de Ivan Cristiano, Fernando Rodrigues e António Côrte-Real.

“Cai o Carmo e a Trindade” podia pertencer aos álbuns “Persona Non Grata” ou “À Flor da Pele”. A audição é obrigatória para todos os que gostam e para todos aqueles que detestam UHF. “Eles vão ficar à solta / foi tudo uma ilusão / a malha da rede é grossa” ou “Cai o Carmo e a Trindade / gente fina no pantanal / castos sem castidade / nada se passa de anormal / em Portugal” são, apenas, excertos de uma letra arrasadora e onde os UHF tocam, profundamente, na questão da justiça portuguesa e no facto de ninguém confiar na justiça que temos. A escrita terá sido inspirada no mediático processo “Casa Pia”?

Mas “Porquê?”, apesar da intensidade interventiva, transmite uma ideia de construção positiva do futuro. “Segue em frente / não olhes para trás”, “Não te vás abaixo / se o medo rondar”, “Portugal – somos nós / mil histórias de coragem” são somente alguns dos versos que entoam em “Portugal (somos sós)” a canção escolhida para encerrar este arrojado trabalho. Ainda antes do final do CD, surge um segmento da composição que inicia o álbum. A vida é feita de ciclos e os extremos acabam por se ir tocando mais do que se imagina. Este é, assim, um disco onde o “repeat” faz mais sentido do que numa obra normal. Os UHF deixam-nos essa mensagem de um final, que é, afinal, um novo começo. Não tem sido a carreira dos UHF um retrato fiel disso mesmo?

Comparar a qualidade entre discos espaçados por 20 ou 30 anos não é simples nem sequer aconselhável. A realidade do presente é muito diferente daquela que António Manuel Ribeiro viveu em 1980, 1987 ou 1993 e a tendência que temos é a de valorizar mais o passado e minimizar o presente. “Porquê?” pode não ser o melhor disco dos UHF, porém, andará lá perto. No mínimo, é o álbum com melhor produção da sua carreira, onde João Martins acrescenta valor, é o trabalho mais interventivo e aquele em que o balanço entre canções pop e rock melhor se faz, sem comprometer a qualidade e a coerência da obra. Este disco não é, apenas, um novo álbum dos UHF. É uma pedrada no charco do conformismo, da mediocridade, da falta de rumo que se sente em certos sectores da nossa sociedade. É um grito de revolta numa sociedade bastante diferente da existente em finais dos anos 70. Estará Portugal preparado para dar respostas a “Porquê?”?
Uma coisa é certa, os UHF, aqueles UHF que atingiram o estatuto de lendas do rock português, estão de regresso.

Luís Silva do Ó

enviado por J. COUTO

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