05/10/2010

A REPÚBLICA DA ESPERANÇA



A República da esperança

Bárbara Guimarães foi considerada a mulher que melhor incarnaria a imagem do regime.


No ano em que se comemora o centenário da República, é legítimo debater as suas questões políticas, ideológicas, futuras e - porque não? - estéticas. A pensar na imagem do busto da República, símbolo do regime - e respirando o ar de renovação que sopra de França - a ‘Domingo' desafiou um insuspeito e imparcial painel de 30 jurados para escolher a figura feminina portuguesa que, na actualidade, melhor representaria a República. Depois da deliberação, Bárbara Guimarães revelou-se a vencedora. Afinal, quem melhor do que ela, uma mulher carregada de esperança, para vestir a pele de um país?

ABRAÇADAS PELA BANDEIRA

O imagem do busto da República passou a simbolizar o novo regime em 1911. A sua musa inspiradora foi Ilda Pulga, que morreu em 1993 com 101 anos, em Lisboa. Natural de Arraiolos, crê-se que Ilda - que à época do retrato teria 18 ou 19 anos e trabalharia como costureira - seria uma mulher com uma vida cultural intensa e dotada de um espírito diferente, muito avançado para a sua época.

Ao artista plástico José Simões de Almeida, prestigiado escultor e professor da Escola de Belas-Artes de Lisboa, coube a autoria da obra, que seguiu o modelo genérico da ‘Liberdade' de Eugène Delacroix, distinguindo-se apenas pelo vermelho e verde das roupas - as cores da nova bandeira nacional.

Com 38 semanas de gravidez, Bárbara Guimarães escolheu um discreto vestido preto para que fosse a República a protagonizar a produção. Chegou pronta aos estúdios, mas curiosa. Fazer a apresentadora vestir a pele da República foi simples: bastou uma bandeira, já que a sua postura serena mas determinada e um ‘clique' no momento certo fizeram o resto.

Fotos que lhe ficarão para sempre tatuadas na memória, por acontecerem num momento especial da sua vida: "Um dia mais tarde, explico à minha filha por que estávamos as duas abraçadas pela bandeira. Esta será uma das últimas recordações desta gravidez", confessou.

Para Bárbara, 37 anos, a República significa a vitória do "ideal da igualdade". No entanto, foi uma época que "trouxe muitas esperanças e, infelizmente, também algumas decepções".

Príncipes e princesas são coisa de histórias infantis, das que gosta de contar a Dinis. "Embora o meu filho também aprecie as histórias republicanas que o pai lhe conta", brincou Bárbara.

MIL E UM MOTIVOS

À apresentadora da SIC - que concorreu com as apresentadoras de TV Cláudia Vieira, Liliana Campos e Conceição Lino e a actriz Margarida Vila-Nova - não foram poupados elogios. A escritora Lídia Jorge enalteceu-lhe a beleza e as suas várias dimensões. "Impressiona-me que nela coabitem duas dimensões: a de uma estrela da televisão e a de leitora de livros, de mulher que sabe dialogar com as pessoas da cultura. A Bárbara faz a ponte entre o reino do aspecto e o mundo da intimidade das obras literárias", afirmou a autora de ‘A Costa dos Murmúrios'. Já o criminalista Francisco Moita Flores destacou Bárbara Guimarães pelo seu "lado mais maternal e sóbrio".

Filipe Duarte Santos, professor de Física da Universidade de Lisboa, considerou Bárbara a mulher "mais interessante", pela facilidade de comunicação aliada ao facto de ser "um ícone de beleza, e às vertentes cultural, educativa e formativa trabalhadas na televisão". A mesma linha de pensamento foi seguida por Margarida Martins, os fadistas Cristina Branco e João Braga, os escritores Francisco José Viegas e Mário Zambujal, o crítico e programador de cinema Mário Dorminsky ou o treinador de futebol Toni, para justificarem o seu voto na apresentadora. O estilista Luís Buchinho, por seu lado, fixou-se nas suas feições: "Tem um rosto com uma beleza clássica, cuja imagem é perfeita para uma escultura que simbolize o ideal da República."

Ao cineasta António da Cunha Telles não escaparam os seus traços de personalidade. "Tem um comportamento determinado e virado para a frente, ou seja, uma personalidade forte. Depois, é uma figura voluntariosa e muito coerente. Era engraçado se fosse mesmo o busto da República. Fazia um certo eco no País", analisou o realizador.

Já o cronista João Miguel Tavares foi prático: "Bárbara tem condições filosóficas para desempenhar o cargo."

E, depois de todas estas, há razões que só o coração conhece: "Para representar a República, teria de ser uma mulher da minha integral confiança", assinou o maestro António Victorino d'Almeida.

CONCORRÊNCIA

Sem que o soubesse, Bárbara Guimarães ombreou com outras concorrentes de peso na eleição da mulher que melhor representaria a República. A todas, os jurados desvendaram caraterísticas excepcionais, de aparência, atitude e personalidade, para justificarem a respectiva escolha.

De Cláudia Vieira, segunda mais votada, Vítor de Sousa deixou-se conquistar pelo "sorriso e a juventude", enquanto a estilista Isilda Pelicano elogiou-lhe a "estrutura física". O cirurgião plástico Biscaia Fraga analisou a candidata com olho clínico: "A sua parte torácica é a mais desenvolvida, de porte atlético. Será uma copa B de transição para C, o que me parece de todo adequado para incarnar o busto da República."

O cronista João Pereira Coutinho, por seu lado, exaltou-lhe a nacionalidade. "A Cláudia Vieira representa uma certa portugalidade, a lembrar campinos, riachos e prados verdejantes."

Para Pedro Mexia, escritor e ex-director da Cinemateca Portuguesa, a escolha é incontestável: "Cláudia Vieira, fosse qual fosse a eleição."

FORÇA E CARÁCTER

Conceição Lino, por sua vez, cativou o voto de António Pedro Cerdeira, motivado pelo estilo discreto. "É alguém que transmite força, credibilidade, sobriedade e classe, tal como a República deve ser", afirmou. Susana Fonseca (presidente da Quercus) e Sandra Nascimento (presidente da Associação para a Promoção da Segurança Infantil) destacaram-na pelo trabalho de "resolução dos problemas da sociedade através do debate público" e a "atenção aos valores da Mulher, da Criança e da Família". Nuno Crato, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, sublinhou por seu turno "a postura de seriedade, a beleza tranquila e discreta, que, simultaneamente, emana uma imagem de esperança".

Já a actriz Margarida Vila-Nova foi a escolhida do juiz desembargador Eurico Reis e também de João Duque, economista e presidente do Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa: "Apesar de ter 100 anos, a República é sempre uma força viva que empolga, entusiasma e lidera um povo. Por isso, de todas a que eu selecciono é a Margarida, pela frescura que transmite". O ex-ministro Mira Amaral salientou-lhe o rosto clássico e o estilista Miguel Vieira "a garra da nova geração". Por fim, Simone de Oliveira e Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, elegeram Liliana Campos. A primeira defendeu o ‘low-profile' da apresentadora como o mais apropriado para a República, enquanto o segundo frisou a "verticalidade e imponência do carácter ".

UM CENTENÁRIO COM MUITO POUCAS RAZÕES PARA COMEMORAR

Os foguetes estão prontos para a grande festa do centenário da República da próxima terça-feira mas muitos portugueses não vêem motivo para celebrações. A começar, claro, pelos monárquicos. Gonçalo da Câmara Pereira, fadista, deputado municipal de Lisboa pelo PPM e vice-presidente do partido, diz mesmo que o dia é de luto. "Vou pôr a bandeira nacional a meia-haste [a da monarquia, não a verde e vermelha, que Gonçalo diz ser "a do Scolari"] e usar uma gravata preta."

Mais incisivo, João Távora, dirigente da Causa Real, vai estar em Guimarães, numa cerimónia em que centenas de monárquicos vão fazer uma "Proclamação de Lealdade" a D. Duarte Pio, o herdeiro do trono que a República extinguiu em 1910. Na cerimónia, também vai estar presente o presidente da Causa Real, Paulo Teixeira Pinto. Militante do PSD - foi deputado e fez parte dos governos de Cavaco Silva -, lidera a equipa que elabora a proposta de revisão constitucional do PSD, que quer alterar a lei fundamental da República. Paulo Teixeira Pinto explica no site da Causa Real as suas razões: "Ser monárquico não é ser contra alguém ou alguma coisa. É ser por um ideal e estar em defesa de quem o incarna (...). O Rei é o primeiro servidor da comunidade, ou, dito de outro modo, o Rei é o último dos súbditos do Reino."

Outro monárquico convicto prepara uma acção subversiva. Rodrigo Moita de Deus, do blog ‘31 da Armada', não quer explicar o que é que o grupo (que inclui vários republicanos) prepara para a madrugada de 4 para 5 de Outubro, "porque senão ainda íamos presos". Mas promete que será tão espectacular como as duas últimas acções, registadas em vídeo - o hastear da bandeira monárquica em Olivença e o roubo da bandeira da Câmara de Lisboa dos Paços do Concelho, que acabou depois por ser devolvida, conta Rodrigo, que vota sempre em branco nas eleições presidenciais.

EXÍLIO EM FLORENÇA

Enquanto se estiver a celebrar o centenário da República, o chef Hélio Loureiro vai ‘exilar-se' em Florença, Itália. Só regressa à República Portuguesa um dia depois das comemorações. Não é boa altura para o País gastar dinheiro, defende o chef executivo da cozinha do Porto Palácio Hotel. Mas há mais razões: "Vivemos numa República que nos foi imposta, não houve um referendo, como o Paiva Couceiro defendia. E, como vemos, é mau termos Chefes de Estado subjugados aos partidos - são sempre reféns do eleitorado, por isso, vão ter sempre que fazer campanha" - argumenta.

"Não há escolas para Presidentes mas educa-se para se ser Rei. E, depois, não existem ditaduras nas monarquias - esse é o maior exemplo de democracia." E, pela democracia, Hélio Loureiro exerce sempre o direito ao voto. Nunca no BE, note-se. Mas, de resto, percorre todos os quadrantes políticos, de acordo com o momento. Só nas presidenciais o seu voto varia entre o branco e o nulo, excepto nas próximas: "Vou votar em Fernando Nobre. Não tem um partido por trás."

O CAOS DA REPÚBLICA

O balanço que os monárquicos fazem do centenário da República é claramente negativo. "Em 100 anos tivemos 71 governos, o que dá uma média de 16 meses de duração de cada um. E neste período só há pouco mais de 30 anos é que temos uma democracia", diz Rodrigo Moita de Deus, que milita no PSD. Tal como João Távora, que é militante do CDS-PP, Rodrigo defende que os monárquicos "devem ter uma participação activa na vida política da República". O blogger aponta como um dos grandes problemas da vida política o alheamento dos cidadãos: "Faz-me confusão aquilo a que chamo de ‘marimbismo', que é uma espécie de ateísmo político. A maior parte das pessoas não liga nada ao que se passa na política portuguesa, o que é preocupante".

Gonçalo da Câmara Pereira chegou a lançar-se numa candidatura presidencial mas foi travado pelo seu próprio partido, o PPM, que não quis um monárquico a concorrer ao mais alto cargo da República. "Não acho que haja contradição, mas o partido entendeu que não era conveniente. Um monárquico deve empenhar-se na vida política". Participa nas eleições presidenciais mas o voto vai em branco.

O cantor José Cid também vai manter o seu voto em branco. Porquê? "Apoiei Cavaco Silva uma vez, não vou apoiá-lo agora. Ele devia ter sido mais corajoso nos últimos cinco anos. Não vou apoiar Manuel Alegre, porque me ofereci na campanha anterior e ele não me aceitou." Mas a sua maior razão não é contra a propaganda política. É que o cantor é anti-República.

"Só podia ser, vendo os erros sucessivos que se tem cometido ao longo destes 100 anos", observa. "Há um regicídio, não há um referendo, institucionaliza-se uma República com sucessivos erros... Até que apareceu, nos anos 20, um homem que se chamava Salazar e que durante, no máximo, dez anos teve boas ideias para o País. Depois tornou-se um ditador, como foi também Marcello Caetano" - prossegue José Cid.

"Há duas ditaduras nesta República, uma delas sanguinária e acima de tudo não dava os direitos essenciais de liberdade, de expressão, de voto ao povo português. Depois veio o 25 de Abril, que é um movimento falhado porque não diminuiu a pobreza, não aumentou a classe média, antes pelo contrário. E ‘incitou' todas as pessoas que tinham muito dinheiro a fazer offshores."

CRÍTICAS À ESQUERDA

Mas não são só os monárquicos que contestam o regime vigente. Garcia Pereira, dirigente histórico do PCTP-MRPP, defende que a Constituição devia mudar, para acabar com aquilo a que chama "democracia parlamentar burguesa". As mudanças passariam por medidas como "a obrigatoriedade de eleição de todos os titulares de cargos públicos, que não poderiam ganhar mais do que os operários. O poder nas empresas estaria nas mãos das assembleias de trabalhadores e haveria um Parlamento com deputados eleitos por outro método que não o actual sistema de Hondt, que deixa de fora partidos com votações expressivas". Parecem ideias saídas do PREC - e Garcia Pereira não recusa o rótulo de extrema-esquerda para o seu partido - mas o dirigente defende que "nunca como agora fez tanto sentido defender ideias revolucionárias, para mudar um país cada vez mais desigual, mais empobrecido e antidemocrático".

Ruben de Carvalho, ex-deputado do PCP e vereador da Câmara de Lisboa, também critica o rumo que o regime tomou no pós-25 de Abril, mas as suas divergências prendem-se mais com as políticas seguidas do que com a natureza do regime. Garante mesmo que, "caso o PCP chegasse ao Governo, a revisão da Constituição não seria uma prioridade". "Defendemos um regime parlamentar e multipartidário. As outras forças políticas é que querem retirar da Constituição todas as conquistas que se conseguiu com a revolução de Abril".

REGIME SEM DIREITA

À direita, também há razões de queixa em relação à República. Jaime Nogueira Pinto recusa os termos ‘republicano' e ‘monárquico' e afirma-se como "um nacionalista". E explica o que o separa dos partidos que governaram desde o 25 de Abril: "Os partidos têm uma preocupação de defesa do regime; a questão nacional é para eles secundária, só a invocam por razões eleitorais. Como não dá votos, não interessa", diz o professor universitário, que acaba de publicar um livro sobre a I República.

Para Jaime Nogueira Pinto, que defendeu a figura de Salazar aquando da eleição televisiva do ‘Maior Português de Sempre', pior que o sistema de representação política actual é a "limitação genética do leque ideológico. Este regime só tem esquerda e centro". Analisando os 100 anos da República, Nogueira Pinto elege três momentos positivos: "Foram períodos de reconstrução interna e de afirmação externa, como o consulado sidonista e os primeiros anos do Estado Novo; nos anos sessenta - de 1961-1968 - foi a mobilização do País para enfrentar a Guerra de África e o consequente desenvolvimento económico-social de cá e lá, gerando as taxas de crescimento ‘asiáticas' da fase final do Estado Novo. Na III República, houve o primeiro Cavaquismo, que pôs termo à hegemonia esquerdista e trouxe os anos de vacas gordas de 1986 a 1993."

REVISIONISMO HISTÓRICO

Uma crítica generalizada que todos fazem é à forma como se está a celebrar o centenário. "Revisionismo histórico", "deturpação da verdade" e "ocultação de crimes graves" são críticas gerais às várias exposições e publicações que a comissão criada pelo Governo patrocina. João Tomás, dirigente da Causa Real, é um dos fundadores do site centenariodarepublica.org, que publica desde 2007 artigos de vários autores sobre os acontecimentos sobre o fim da monarquia e dos 16 anos da I República. "O nosso objectivo foi pôr na Internet toda a documentação sobre a revolução, para contrabalançar a versão oficial, que faz parte do ensino republicano. As pessoas podem ler os factos e perceber o que foi, de facto, a instauração da República."

Ruben de Carvalho e Garcia Pereira criticam o ‘esquecimento' da repressão contra operários e sindicalistas na I República, marcada pela agitação social e por episódios sangrentos.

Aline Gallasch-Hall, deputada municipal de Lisboa pelo PPM, junta-se a críticas. "Ninguém diz que, na monarquia, as mulheres tinham direito de voto. Havia a figura do chefe de família, que podia votar, e muitos chefes de família eram mulheres. Isto foi abolido pela República. A monarquia era mais democrática", diz Aline.

O actor Nicolau Breyner só se sente bem - "em qualquer parte do Mundo" - quando não é governado por um ditador. Apesar de não ser monárquico, está "consciente" das vantagens deste regime. "O maior democrata que apareceu em Portugal foi o rei D. Carlos", acredita. "E tenho também a consciência de que a Monarquia seria mais barata para o País: é uma questão de saber quanto custa um rei e qual o preço de termos eleições de quatro em quatro anos." E um rei é um símbolo. "Um dos males do nosso povo é estarmos sem pessoas que admiremos." O actor consegue, naturalmente, viver em República sem faltar às eleições, eleger o seu candidato, e até apregoar que "o voto deveria ser obrigatório". Nada mais, nada menos.

TRINTA JURADOS PARA ELEGER UMA NOVA FIGURA PARA O BUSTO

A eleição da mulher que melhor representaria o busto da República contou com os votos de José Medeiros Ferreira, Francisco Moita Flores, Mira Amaral, Pedro Mexia, Lídia Jorge, Francisco José Viegas, Mário Zambujal, João Miguel Tavares, João Pereira Cou-tinho, Biscaia Fraga, Isilda Pelicano, Miguel Vieira, Luís Buchinho, António Victorino d'Almeida, Cristina Branco, João Braga, Vítor de Sousa, António Pedro Cerdeira, Simone de Oliveira, Margarida Martins, Mário Dorminsky, António Cunha Teles, Toni, Susana Fonseca, Nuno Crato, Sandra Nascimento, Filipe Duarte Santos, Eurico Reis, João Duque e Paulo Rodrigues.

"CORREIO DA MANHÃ"
03/10/10

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