20/10/2010

FILIPE LUÍS

O ar impuro da República 

Esta República criou novos condes, duques, marqueses e barões. Tornou-se uma monarquia 

Cem anos depois do golpe republicano de 5 de outubro, será esta uma república com bom ambiente? O ar é suficientemente respirável? O ruído respeita os limites razoáveis? O lixo é bem separado e tratado? Falo, não de decibéis, de níveis de dióxido de carbono ou de resíduos sólidos, mas de valores, atitudes e comportamentos. A República Portuguesa respira ar puro ou os seus pulmões estão enegrecidos pelo nepotismo, pela favorecimento ilegítimo, pelo tráfico de influências, pelos privilégios e pela corrupção? A efeméride que acabámos de comemorar teria sido uma excelente oportunidade para um check up ao ar da República e ao estado geral da sua saúde. A lista de hábitos enraizados, protocolos, tiques e formas do nosso regime, que já vai na sua terceira versão, depois da I República e do Estado Novo, não resiste a um escrutínio, ainda que superficial, dos valores republicanos. Olhando para as práticas, para os titulares de cargos políticos ou para outros membros de órgãos de soberania, para o setor do Estado e para as empresas públicas, verifica-se que o País conservou, quando não recuperou, os piores vícios da monarquia, fazendo da efígie republicana uma mera fachada. É paradoxal: os reis constitucionais cultivavam, na rua, a dessacralização do poder. A República, porém, fecha-se nos seus palácios. Nos anos 70 e 80 do século XIX, o rei D. Luiz, pai de D. Carlos, ia todas as tardes ao Rossio, beber a sua ginjinha com os amigos. Sozinho e sem segurança. Qualquer súbdito poderia trocar dois dedos de conversa com o rei, que se apresentava no seu grosseiro jaquetão burguês, e trocar com ele umas palmadas nas costas. Hoje, qualquer mísero secretário de Estado passa em carros topo de gama de vidros fumados, alheio à plebe. O ar da República está irrespirável. Expliquemo-nos: os valores republicanos exaltam a probidade na gestão da coisa pública, a transparência na condução dos negócios do Estado, a frugalidade dos representantes do povo, a proximidade entre eleitos e eleitores. Segundo os valores republicanos, não há súbditos, mas cidadãos, tratados em pé de igualdade perante a justiça e a lei. Os juízes, os ministros, o Presidente, são também cidadãos que, nalguns casos, apenas cumprem uma missão definida no tempo, esperando-se deles que voltem depois à sua atividade normal, dando lugar a outros eleitos. E o que vemos? A Justiça condena os mais pobres e favorece os mais ricos. Os titulares de cargos públicos são inacessíveis e distantes. Os que vivem do dinheiro do Estado, gestores públicos de empresas deficitárias, deputados, autarcas, administradores, pessoal político de institutos, fundações e autarquias têm direito a prebendas, mordomias, carros, motoristas (coches e cocheiros...). Quando chegam a um cargo político, raramente voltam à base anterior, porque, à sua espera, logo aparece um lugar, público ou privado, que fará render a sua agenda de conhecimentos e interesses. A República replicou os antigos privilégios e fundou as suas próprias castas. O que esta República criou foram novos "condes, duques, marqueses e barões" que, oriundos dos partidos ou de grandes famílias, funcionam em circuito fechado como a antiga nobreza. Esta República tornou-se uma monarquia.

IN "VISÃO"
14/10/10

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