05/10/2010

BRUNO FARIA LOPES




Sobre a maior herança que Sócrates deixa ao país


Mais do que as contas por pagar, o primeiro-ministro matou o que restava da confiança dos portugueses em quem os governa
Em 2009, ano de três eleições, José Sócrates deu um prémio ao seu maior cliente político: um aumento de 2,9% à função pública, o maior em termos reais em pelo menos 12 anos. O aumento foi decidido no final de 2008, quando já era visível a extensão da crise financeira mundial, "a maior em 80 anos", como gosta de sublinhar o primeiro-ministro. Meses depois, ao mesmo tempo que estimulava a economia - como Bruxelas pediu -, o PS apresentou um programa eleitoral repleto de "apoios", na altura configurado como um "choque social". Sócrates e Teixeira dos Santos - que agora, em Setembro, já sabem que sem medidas extraordinárias não conseguem cumprir a meta orçamental de 2010 - nada disseram há um ano sobre o défice galopante de 2009. O primeiro-ministro prometeu então mais comparticipações nos medicamentos, mais obras públicas, mais emprego e garantiu que não subiria os impostos.

A vitória eleitoral chegou. Tendo perdido a maioria absoluta que esbanjou durante quatro anos - com excepções, como a reforma da Segurança Social -, Sócrates simulou uma tentativa de coligação. Reuniu com todos os partidos da oposição com vista a um eventual acordo, como um homem que pede publicamente a quatro mulheres qual quer ser sua namorada. Seguiu a governar sozinho, como queria.

Com a consciência de que a legislatura poderia não aguentar até ao fim, Sócrates fez um mau Orçamento do Estado para 2010, que adiou o problema do défice para 2011, esperando que a economia resolvesse então o problema - isto quando os sinais de alarme eram evidentes e outros países do nosso clube já tomavam medidas duras.

Em Maio "o mundo mudou", veio a primeira ronda de austeridade e caiu o programa económico do governo - mas não a retórica. Pegando nas mal explicadas propostas de revisão constitucional do PSD, Sócrates cavalgou pela defesa do Estado social durante todo o Verão. Entretanto Portugal era o único país em que défice e despesa continuavam a subir, facto para que não há ainda explicação cabal. Num tremendo erro, o governo criou a dúvida sobre se cumpre a meta deste ano - fatal, neste sistema em que mercados e bancos castigam as economias que se endividaram para ajudar mercados e bancos.

Esta semana ficámos a conhecer parte da factura da ausência de sentido de Estado. Teria sempre de haver cortes duros na despesa, mas o tempo é precioso para equilibrar a receita. Porque perdeu esse tempo, o governo corta agora às cegas para aplacar os mercados, mostrando os limites do amor ao Estado social: corta brutalmente nas comparticipações dos medicamentos (mantém o privilégio da ADSE), ao mesmo tempo que congela todas as pensões de reforma; corta nos abonos de família, nos salários a partir de 1500 euros brutos; sobe o IVA, o imposto mais regressivo. O resto da factura - o que pagaremos a mais em juros pela negligência política - virá mais tarde.

Em Belém está um presidente que, quando foi ministro das Finanças, em 1980, deu início a uma política económica expansionista que acabaria em desastre, com a intervenção do FMI. Foi, no Portugal pós-Abril, um dos primeiros cortes profundos no contrato de confiança entre governantes e governados. Este contrato foi sendo sucessivamente desrespeitado, face à permissividade de toda a sociedade (sobretudo das "elites"), até ser assassinado por José Sócrates. Mais que as contas por pagar, a maior herança negativa da era Sócrates é a quebra definitiva e irreparável da confiança entre os portugueses e os governantes. A República está em crise profunda.

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01/10/10

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