22/07/2010

RODRIGO TAVARES






O Impacto da Genética na Política

As fronteiras do Estado serão demasiado pequenas para albergar a dimensão histórica de cada indivíduo

As imagem coloridas de pessoas esgazeadas, torcendo pelo seu país no Campeonato do Mundo de Futebol, poderão fazer parte do passado. No futuro, será cada vez mais difícil identificarmo-nos de forma tão intensa e exclusiva com um país e com uma identidade nacional. A culpa é da genética.
Seres humanos tendem a viver em comunidades que partilham princípios identitários comuns. Desde a nascença que somos moldados pela sociedade de forma a que nos identifiquemos com um grupo. Somos portugueses não porque nascemos portugueses, mas porque nos tornámos portugueses. Neste processo, a nossa necessidade de pertencer a alguma coisa, obriga-nos a demarcarmo-nos perante o "outro". Como dizia Saramago "A busca do outro talvez seja o caminho pelo qual cada um de nós consegue chegar a si próprio". É assim que criamos a nossa identidade nacional.
Mas a genética está prestes a baralhar a forma como nos identificamos. Hoje, testes conhecidos como ADN de ancestralidade já podem ser encomendados pela internet por cerca de 150 Euros. Começa a ser fácil identificar as rotas migratórias de cada indivíduo desde o berço africano até aos dias de hoje. Se até agora o nosso passado restringia-se a meia dúzia de gerações, em breve alargar-se-á a dezenas de milhares de anos. E conscientes da nossa amplitude e da nossa verdadeira extensão, será difícil para cada um de nós identificar-se exclusivamente com os elementos do presente. Pela primeira vez a nossa identidade poderá ser formada tanto pela cultura quanto pela biologia.
O mês passado, um estudo publicado na revista "Nature" demonstrou que os judeus são geneticamente mais próximos de outros judeus no estrangeiro do que de pessoas com quem partilham a mesma nacionalidade. Outro estudo provou que os descendentes directos dos fenícios residem sobretudo em Malta, e não no Líbano - país que sempre se orgulhou desse património. O que acontecerá quando nós portugueses conseguirmos identificar as nossas origens? Se a nossa relativa homogeneidade foi alcançada, em larga medida, negando a nossa ascendência africana, árabe, judaica, visigótica, ou celta, a genética fará que se restitua num laboratório aquilo que fizemos questão de eliminar nos campos de batalha. Veremos que o "outro" está na verdade dentro de nós. Nos EUA e na Europa já há quem use os testes de ADN para reivindicar a cidadania de países onde habitaram os seus ancestrais. Em dificuldades económicas, muitos portugueses poderão aproveitar-se da genética para obterem a cidadania em países mais ricos.
A genética poderá, por isso, ameaçar a ideia de Estado e de nação - os pilares onde estão assentes a política e as relações internacionais. As fronteiras do Estado serão demasiado pequenas para albergar a dimensão histórica de cada indivíduo. A nossa pátria poderá deixar de ser a língua portuguesa.

* Rodrigo Tavares é Investigador na Universidade de Columbia e Consultor do Secretariado da ONU.

in "VISÃO"
09/07/10

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