20/07/2010

MANUEL MARIA CARRILHO

MANUEL MARIA CARRILHO

Um patriotismo fugaz

Depois de um mês de intensa futebolização dos espíritos, é o momento, agora que terminou o Campeonato do Mundo, de voltar ao significado do fenómeno. Nele encontram-se, sem dúvida, diversas pistas para a compreensão do nosso mundo.

A futebolização dos espíritos caracteriza-se, como aqui escrevi há cerca de um mês, por três ideias centrais: pela transformação do futebol numa espécie de religião global, que chega a definir uma "visão do mundo" e uma temporalidade específicas. Pela destruição de todos os valores tradicionais do desporto, que são esmagados pelo rolo compressor de um só, o da performance, que, por sua vez, se combina de todas as formas imagináveis com uma generalizada lógica mercantilista. E pelo condicionamento que o futebol exerce hoje no imaginário dos povos, no sentido da sua uniformização.

Trata-se de um fenómeno recente, que é muito forçado ligar - como tantas vezes acontece - aos Jogos Olímpicos da Antiguidade grega. Sobretudo porque estes jogos, que decorriam no Olimpo em honra de Zeus, eram uma festa eminentemente religiosa, em que os atletas representavam as cidades gregas que, durante os jogos, suspendiam as suas hostilidades e todas as lutas pelo poder.

Estes jogos, que decorreram durante mais de onze séculos (de 776 a. C. até 393 d. C.) só desapareceram com o triunfo do cristianismo. Terá sido Ambrósio, bispo de Milão, quem convenceu o Imperador Teodósio a acabar com os Jogos Olímpicos, por suspeita de alimentarem o paganismo.

O extraordinário, de que pouca consciência se tem hoje, é que o espectáculo desportivo, que os Jogos Olímpicos representaram na Antiguidade, desapareceu das sociedades ocidentais durante cerca de quinze séculos, até finais do século xix. Só em 1896 é que, por iniciativa do Barão de Coubertin, se retoma essa longínqua herança, que se viria a desenvolver de múltiplas formas no século xx: Jogos Olímpicos, Campeonatos de Futebol, Voltas de Bicicleta, Torneios de Ténis, etc.

Mas a grande transformação dar-se-ia em meados do século xx, por um lado com o aparecimento da televisão, por outro lado com a emergência da cultura dos tempos livres. É esta convergência, do desporto com a televisão e com o lazer, que vai definir o novo fenómeno desportivo, que se impõe nos anos 60 do século xx e se prolonga até hoje. Convergência que vai produzir um fenómeno de identificação cada vez maior entre as massas e o desporto, que toma a sua forma mais comum e mais intensa no futebol.

E o segredo está aqui, no modo como esta identificação se processa, respondendo à necessidade que as comunidades, as sociedades e as nações têm de expressar, manifestar e explicitar a sua existência colectiva. Necessidade bem real, mas que a evolução do mundo contemporâneo tem deixado cada vez mais sem resposta, abandonando os cidadãos, ora às angústias da atomização individualista, ora às ansiedades da globalização planetária.

Resposta que o desporto, e sobretudo, o futebol, conseguiu dar, ao talhar um tipo de identificação inédita com as massas. Uma identificação, digamos, flexível, aberta a um processo que se alimenta do seu próprio nomadismo, que não fica refém de jogadores ou de equipas: no último jogo do Campeonato Europeu de Clubes, o Inter de Milão (que venceu a prova) não tinha em campo um único jogador italiano!...

É assim que os jogadores acabam por representar, mais do que uma qualquer comunidade de origem ou de adopção, uma identidade em declinação constante, que vai remetendo para diferentes entidades (as equipas, as cidades, etc.), sem outro limite que não seja o da representação nacional. E é justamente esta deriva de uma identidade na verdade apátrida que, em momentos como o do Campeonato do Mundo de Futebol, abre caminho ao apogeu de um patriotismo sem dúvida tão sulfuroso como fugaz, mas de indiscutível impacto simbólico.

Claro que, para o sucesso destes acontecimentos, conta muito a sua transmissão em directo, como conta o suspense mediático que se alimenta dias a fio ou, ainda, o facto de eles serem encenados como se de um teatro da igualdade se tratasse: a disputa vai apurando os mais iguais entre iguais, até à decisão final. Mas tudo isto se apoia, no fundo, numa identificação que - com o declínio da política - se tornou numa das raras experiências que, hoje, permite não só sentir o vibrar colectivo das nações, como tornar visível a sua existência.

É talvez esse o único traço comum com os Jogos Olímpicos da Antiguidade - ser um momento em que, através de um comportamento ritualizado, se torna visível o que na vida quotidiana é cada vez mais invisível: a existência de uma comunidade e de referências partilhadas.


in "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
15/07/10

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