16/07/2010

ALBERTO GONÇALVES

ALBERTO GONÇALVES

O Evangelho segundo a 'Playboy'

O verdadeiro problema da última (se calhar literalmente) edição da Playboy caseira é a bizarria de servir Saramago a quem apenas espera encontrar meninas em pelota. Curiosamente, o polémica surgiu de outro lado, isto é, da "homenagem" (sic) que a revista quis fazer ao falecido Nobel: meia dúzia de retratos de um infeliz fantasiado de Cristo junto a uma amostra das referidas meninas. Os responsáveis da publicação explicam que pretenderam transmitir uma "mensagem forte", a exigir "análise profunda".

De análise profunda, embora a cargo de uma junta psiquiátrica, precisam os que vêem no conjunto de fotografias mais do que aquilo evidentemente é: um monumento ao atraso de vida e, talvez, um golpe publicitário. Qualquer que fosse o motivo, o que correu é que a Playboy original tenciona cancelar a licença da versão portuguesa e eu diverti-me a contar os (poucos) minutos que separaram a divulgação da notícia dos primeiros berros de "Censura!".

Naturalmente, os berros surgiram num blogue subsidiário do Bloco de Esquerda. Por acaso, nem o blogue em causa nem o Bloco são conhecidos por patrocinar opiniões que consideram contrárias aos seus princípios, e não me lembro de ler no www.esquerda.net (o site oficial do bando) textos simpáticos para com a globalização, o Vaticano ou as políticas de Israel, por exemplo. Trata-se de critérios editoriais, claro, os quais pelos vistos não se aplicam à Playboy, que deve publicar tudo o que os funcionários do dr. Louçã acham publicável ou sujeitar-se a acusações de fundamentalismo e, se lhes puxarem pela língua, a equivalências com os islâmicos que protestam as ofensas a Maomé.

Na perspectiva dos rapazes da esquerda folclórica, todo o pretexto serve para realçar a intolerância do Ocidente, apontar o puritanismo dos americanos e relativizar a fúria do Islão, incluindo comparar a decisão interna de uma empresa com multidões que babam ódio e estados que emitem sentenças de morte. É lá com eles, mas, de um arrevesado modo, em matéria de censuras e fundamentalismos o fait-divers da Playboy diz mais sobre os que o criticaram do que sobre os que o produziram. Como o acto de censura homenageia melhor do que a pretensa homenagem o censor que Saramago foi.

Quarta-feira, 7 de Julho

Europeus acidentais

E, num instante, o discurso oficial saltou do orgulho no Tratado de Lisboa e das comemorações da integração europeia para um genérico ódio à Europa "ultraliberal", cujas instituições centrais conspiram contra os nossos "interesses estratégicos" e cujos países membros atiçam as respectivas empresas para nos enxovalhar. É uma atitude bastante mais coerente, não só com os governantes que sempre se sentiram em casa na casa de Hugo Chávez e sobas afins, mas igualmente com os portugueses em geral, os quais, valha a verdade, nunca se sentiram assim muito europeus.

As reacções ao Mundial de futebol, se me permitem a fatídica alusão, têm sido aliás representativas do lugar que nos atribuímos na Terra. Logo que terminou a obrigação ("patriótica", dizem) de "torcer" pela selecção nacional, os entusiastas da bola dedicaram-se ao Brasil, à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e até ao Gana, que também servia para atingir o objectivo de todos: evitar a vitória de uma equipa europeia. Na televisão, nos jornais, na Internet e nos cafés, peritos e amadores proclamavam com nítida satisfação que este era o campeonato da América Latina, e o desânimo foi grande quando a realidade os desmentiu.

Isto não acontece por acidente. Acidental é a existência portuguesa num continente onde, salvo em raríssimos e remotíssimos momentos, a periferia geográfica coincidiu com a periferia política, económica e cultural. Por culpa própria ou destino, persiste em nós a impressão de habitar uma região inadequada à "identidade nacional", seja isso o que for. Como em 1500, em 2010 um vago Sul, repleto de praias, mulatas, sombreros, cachaça e corrupção, continua a seduzir-nos.

Claro que, graças às esmolas da UE, ao longo dos últimos 25 anos aproximámo-nos do Primeiro Mundo e afastámo-nos do Terceiro. Mas logo que a Europa retribua em indiferença uma fracção do nojo que lhe dedicamos e as esmolas terminem, regressaremos, salvo na geografia, às paragens míticas a que chamamos lar. Até lá, somos europeus por empréstimo, ou, literalmente, a fundo perdido.

Quinta-feira, 8 de Julho

O interesse nacional

A OCDE afirma que Portugal terá de criar 170 mil empregos para, cito, anular os efeitos da crise. Naturalmente, a OCDE não explica como se consegue tal milagre. Pior ainda, não justifica que o milagre seja de facto necessário.

À semelhança da morte anunciada de Mark Twain, o drama produzido a pretexto do desemprego parece-me bastante exagerado. De quem falamos quando falamos dos 600 mil sujeitos sem trabalho? Sinceramente, não faço ideia, em parte porque a crueza dos números anula os indivíduos, em parte porque os indivíduos em causa sempre foram assaz anuláveis. Mesmo que desçamos da generalização estatística para a mais humana dimensão individual, continuamos na ignorância acerca de cada um dos desempregados. No máximo, percebemos tratar-se do João, metalúrgico do Cacém, e da Emília, escriturária de Santo Tirso. Porém, o que sabemos realmente do João e da Emília? Nada, excepto o pormenor de não haver nada que deles importe saber.

As pessoas que importam, as pessoas que, graças à família, aos amigos ou aos partidos, são alguém, essas estão dignamente colocadas nos empregos que Portugal, leia-se o Estado, leia-se o sistema político, tem-se esforçado com sucesso para criar - e criar, no sentido de produzir a partir do zero, é o termo. Não se pode acusar os senhores que mandam nisto de deixarem cair os parentes na lama. Os parentes caem por exemplo na PT, e é um exercício compensador inventariar os cargos ali optimamente remunerados de filhos, irmãos, cônjuges, primos, genros e simples alter-egos das sumidades que, por estes dias, saíram a defender o "interesse nacional" contra a oferta da espanhola Telefónica.

É escusado acrescentar que, de tão irrelevante, o futuro profissional do João e da Emília não cabe no "interesse nacional", mas apenas no interesse deles próprios. E isso só não revela um egoísmo atroz na medida em que o João e a Emília provavelmente integram os 64% de cidadãos anónimos que, segundo sondagem recente, defendem a golden share. E muito bem: primeiro, o País.

Sexta-feira, 9 de Julho

Um sucesso de bilheteira

Não imagino nada de muito pior do que centenas de profissionais das "artes", leia-se sobretudo do teatro, do cinema e da dança, reunidos numa sala. O caso muda radicalmente de figura se, em vez de ameaçarem actuar, os profissionais em causa ameaçarem não actuar. Felizmente, foi a segunda hipótese a verificada no Maria Matos, em Lisboa, onde 600 vultos da Cultura (note-se que observei a maiúscula) se juntaram um destes dias em assembleia para protestar contra os "cortes" de 20% no sector e contra a ministra que os assina.

Contas feitas, o encontro resultou numa lista de sete exigências a enviar ao eng. Sócrates, entre as quais "o respeito pelos artistas e criadores portugueses" e "o fim do discurso da subsídiodependência por parte do Governo". São propostas justas, porém mal endereçadas. Seria mais interessante que se propusesse acabar com o discurso da "subsídiodependência" (sic) por parte dos "artistas" e "criadores" portugueses, que assim dariam um passo decisivo rumo à respeitabilidade.

De resto, embora esteja sinceramente convicto da culpa do eng. Sócrates em cerca de 83,60% das desgraças que nos abalam, nesta matéria o homem está inocente. Por mim, acho óptimo que os espectáculos sejam financiados com dinheiro público: o dinheiro que o público deseja gastar com os ditos. Se o público não está para aí virado, é capaz de ser ligeiramente ofensivo assaltar-lhe os rendimentos de modo a financiar produtos que apenas excitam jurados de festivais prestigiados, críticos da imprensa prestigiada e amigalhaços com prestígio em geral, os quais gostam dos produtos sobretudo porque não os pagam.

Nisso, são o oposto do contribuinte indígena, que evita consumir as "artes" indígenas a todo o custo mas não consegue evitar pagá-las: depois dos ameaços, o Governo deu tipicamente o dito pelo não dito e reduziu os "cortes" para 12,5%. A mendicância é a única arte nacional de êxito garantido.

1950 é agora

Por causa de umas declarações em Madrid sobre o uso da golden share na PT, o dr. Passos Coelho viu-se acusado pelo eng. Sócrates de desonrar "as boas tradições da política portuguesa", ou seja, não divulgar lá fora as misérias caseiras. Depois do "interesse nacional", as "boas tradições". Se juntarmos a isto os nomes feios, incluindo o de Miguel de Vasconcelos, que os serviçais do Governo chamam na Internet aos críticos da intervenção estatal, constata-se que o país moderno que o eng. Sócrates prometeu se parece imenso com o país atrasado que Salazar legou. Mais um pedacinho de furor patriótico, volta-se à substituição de importações e fecham-se as fronteiras, o que nem será mau desde que avisem com antecedência: é que eu gostava de poder escolher o lado menos tresloucado.


in"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
11/07/10

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