21/06/2010

PEDRO NORTON






A pescada

Os partidos e a disciplina que impõem ganharam um peso de tal maneira atrofiante que conseguem o milagre de transformar deputados capazes em simples máquinas de votar

1 - Não será particularmente recomendável mas é verdade. Eu, que sem mais provas do que os demais portugueses, estou até convencido de que José Sócrates conhecia bem o negócio PT/TVI, sou obrigado a fazer minhas as palavras de Rui Pedro Soares. "O relatório apresentado é como a pescada: antes de ser já o era." Mas para que não se diga que faço do jovem prodígio a fonte de toda a minha inspiração, relembro (num breve assomo narcísico) o que escrevi, nas páginas da VISÃO, no passado mês de Março: "a Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso do negócio da PT / TVI dificilmente vai ser muito mais esclarecedora do que têm sido as mediáticas sessões da Comissão de Ética (...). No fim do dia, todos vão concluir aquilo que já tinham concluído antes de sequer se ter iniciado qualquer um destes processos. O PS ficará (continuará) convencido de que José Sócrates nunca mentiu. A oposição não terá (já não tem) qualquer dúvida de que ele não fez outra coisa. E o problema começa aqui. É que as conclusões da Comissão Parlamentar terão pouco a ver com uma "verdade inequívoca" que um qualquer tribunal tentaria apurar. As conclusões da Comissão vão ser, muito mais prosaicamente, apenas e só, as conclusões da oposição maioritária (9 deputados, na Comissão, contra os 8 do PS). "José Sócrates mentiu." Na melhor das hipóteses, "o senhor primeiro-ministro faltou à verdade ao Parlamento (...) Independentemente do que, verdadeiramente, se tenha passado, é inevitavelmente o que concluirão. É o que já concluíram". Como não sou bruxo nem me tenho na conta de um analista divinamente iluminado, é preciso procurar as razões para esta astrológica profecia noutro lado: a independência está para as comissões parlamentares de inquérito como o multipartidarismo está para a Coreia do Norte. Digam-me quem vota, dir-vos-ei como vota.

2 - Dito isto, é da mais elementar justiça lembrar que não acertei em toda a linha. Ingénuo, acreditei que entrávamos numa via sem retorno. Que se arriscava a conduzir o País a uma crise política se as oposições fossem minimamente coerentes com as conclusões que já então se adivinhavam. Mas parece que, de então para cá, "o Mundo mudou". E que ninguém está verdadeiramente interessado em ocupar, antes de meados de 2011, a cadeira escaldante de José Sócrates. Não fosse esse "pequeno" contratempo e será que estaríamos agora entretidos a discutir as bizantinas diferenças entre "mentir" e "faltar à verdade"? Eis o que é verdadeiramente impossível de provar.

3 - Como nem tudo é mau, é justa uma palavra de louvor para alguns deputados. Não é por falta de parlamentares inteligentes e bem preparados (João Semedo, Cecília Meireles, João Oliveira, Pedro Duarte) que a Assembleia da República se desacredita ou que as comissões parlamentares de inquérito parecem óperas bufas. Mais uma vez, é preciso procurar mais longe. Pelo meu lado, arrisco-me a dizer que, no sistema político português, as máquinas partidárias e a disciplina que impõem ganharam um peso de tal maneira atrofiante que conseguem o milagre de transformar deputados capazes em simples máquinas de votar.
in"VISÂO" 17/06/10

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