26/04/2010

MÁRIO MESQUITA



Contas de Abril

Todos nós, cada um de nós - sobretudo, os maiores de 50 anos - têm as suas contas a ajustar com o 25 de Abril. Estabelecer os factos com rigor é o programa mínimo dos historiadores. Talvez se possa definir o facto como o acontecimento triturado por juristas, historiadores ou sociólogos, em operações intelectuais necessárias, mas sempre falíveis. Os acontecimentos de 1974 continuam a mostrar-se rebeldes à vontade dos historiadores de reconduzir a multiplicidade das versões à factualidade estabelecida e provada.

No livro 25 de Abril - Mitos de uma Revolução, de Maria Inácia Rezola (baseado numa das primeiras teses de doutoramento sobre este período) os capítulos são, por vezes, formulados sob forma interrogativa, sendo a resposta aproximativa, argumentada, discutida, posta à consideração do leitor. Tome-se, por exemplo, a questão de saber "Quem escolhe Vasco Gonçalves como primeiro-ministro?". Spínola remete essa responsabilidade para Rosa Coutinho, no âmbito do Conselho de Estado, com apoio dos Conselheiros que faziam parte da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas. Contudo, Vítor Alves atribui a decisão ao próprio Spínola. Ricardo Durão "arroga-se de ter sido o autor da ideia". Costa Gomes não se lembra de quem partiu a sugestão. O próprio Vasco Gonçalves sustenta que foi Spínola que fez a proposta " in extremis e também por influência do MFA e dos dois elementos da JSN, Rosa Coutinho e Pinheiro de Azevedo". Otelo Saraiva de Carvalho reclama para si a ideia de nomear Vasco Gonçalves. Vasco Lourenço defende que foi a Coordenadora.

A historiadora sustenta que "o convite a Vasco Gonçalves foi formulado pelo próprio Spínola que, pressionado pela coordenadora ou tentando mais uma manobra para a comprometer e desacreditar, vê nele a sua última alternativa face ao impasse criado". Deste modo, a interpretação fica suspensa entre duas hipóteses alternativas: a cedência de Spínola aos seus adversários ou, pelo contrário, o maquiavelismo do General com vista a desacreditar "os capitães". Em vez de se acantonar em factos com sabor a definitivo, a autora prefere evidenciar que - como diria Immanuel Walerstein - não existe "uma linha simples, rígida e firme que separe a ficção da realidade, a fábula da verdade".

Se as contas de Abril se limitarem a "estabelecer os factos", a tarefa é árdua, mas, se incluírem emoções, sonhos, projectos, a complexidade aumenta. Quando tento reconstituir as minhas vivências de Abril de 1974, detenho-me no balanceamento entre a alegria da queda da ditadura e o receio do exercício do poder por militares, a euforia de escrever sem censura e a angústia de preencher o vazio de quase cinquenta anos sem liberdade de imprensa, a esperança numa democracia plena e o receio do retorno a outros tipos de autoritarismo. Nem todos os meus contemporâneos partilhariam do mesmo estado de espírito. Se as "esperanças (ou desesperanças) de Abril" não são redutíveis a uma plataforma idêntica, o olhar retrospectivo sobre "o 25 de Abril hoje" também não poderia ser coincidente. Podemos concordar no diagnóstico desencantado da situação actual, com desequilíbrios internacionais geradores de incerteza, a União Europeia em fase hesitante, o fantasma da Grécia ao fundo da rua, as crises internas da economia à justiça e os escândalos nossos de cada dia como estímulo intelectual. Mas, embora o peso dos factores ideológicos se tenha atenuado, será impossível fazer unanimidade em torno de uma (sempre incerta) análise comparativa entre os projectos de 1974 e o Portugal de agora.

A propósito: que pensariam os democratas portugueses que viveram o 5 de Outubro se comparassem as esperanças republicanas de 1910 com as certezas salazaristas de 1946, trinta e seis anos após a queda da monarquia?

"JORNAL DE NOTÍCIAS" 25/04/10

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