03/04/2010

ANTÓNIO MARINHO E PINTO



O direito penal do espectáculo

Está em curso na Assembleia da República mais uma revisão do Código de Processo Penal. Trata-se de uma proposta legislativa apresentada pelo Governo que revoga parcialmente a reforma de 2007. Algumas das alterações propostas não suscitam grandes reparos, mas outras são preocupantes e devem ser rejeitadas.

A primeira tem a ver com a possibilidade de o Ministério Público e a Polícia poderem efectuar detenções fora de flagrante delito. A lei ainda em vigor valoriza o papel do Juiz de Instrução e obriga a determinados procedimentos. É uma solução equilibrada porque num estado de direito só um juiz deve poder retirar a liberdade a uma pessoa, mesmo que transitoriamente. Fora de flagrante delito e salvo algumas excepções pontuais, as detenções devem ser sempre autorizadas por um Juiz.

O que acontece é que o MP e a Polícia querem poder deter livremente qualquer pessoa. E, em vez de pedirem o competente mandado de detenção ao juiz, alguns procuradores e alguns polícias preferem ir para os órgãos de comunicação social dizer que os criminosos ficam à solta porque a Polícia não pode os pode deter.

Se esta alteração for aprovada vamos voltar a ter detenções por puro exibicionismo mediático ou para achincalhamento público dos detidos. Vamos ter de volta o espectáculo das detenções em directo para as televisões, de preferência em prime time.

Outra proposta de alteração prevê que os detidos em flagrante delito possam estar até 48 horas sem ser apresentados ao Juiz de Instrução. Ora, o Estado tem o dever de garantir que qualquer cidadão privado da liberdade tenha acesso imediato a um juiz que decida sobre a legalidade da detenção.

Não é indiferente que uma pessoa seja presente a um juiz imediatamente após a detenção ou apenas depois de estar mais de 40 horas num calabouço, sem cinto, sem cordões dos sapatos, sem objectos pessoais, muitas vezes sem dormir e até sem se alimentar devidamente. O estado físico e psicológico com que uma pessoa aparece diante do juiz não é irrelevante em termos processuais. E o MP sabe isso.

A proposta do Governo admite também a possibilidade de o MP voltar a poder recorrer das decisões dos Juízes de Instrução que não apliquem as medidas de coacção por si requeridas. Essa é uma opção que também deve ser rejeitada. O MP não pode, por um lado, querer o estatuto de magistratura a quem não se aplicam muitos dos deveres e restrições que oneram as partes processuais e, por outro lado, quando lhe convém, agir como se fosse uma parte processual. Como garante da legalidade o MP só deveria poder recorrer (mesmo que em benefício do arguido) das decisões que violassem ostensivamente as leis da República. Mas nunca para pôr em causa a interpretação e a ponderação que um juiz faça dos factos.

Além disso, em certos casos, a alteração proposta pode impedir que o arguido recorra da decisão que o submete uma medida tão grave como é a prisão preventiva, quando esta lhe for aplicada pelo Tribunal da Relação com base em recurso interposto pelo MP da decisão do Juiz de Instrução que rejeitara essa medida.

Infelizmente, a generalidade dos magistrados do MP não actua em representação do Estado mas sim de si próprios. Senão atente-se naquelas situações em que no mesmo processo, perante os mesmos factos, com as mesmas provas e a mesma lei, o magistrado do MP na 1ª instância tem, em representação do Estado, uma certa posição, mas o colega na 2ª instância, em representação do mesmo Estado, já tem uma posição oposta e, por vezes, no STJ (ou no Tribunal Constitucional) um outro Procurador, ainda em representação do mesmo Estado, vem a assumir uma posição completamente diferente das dos seus colegas das instâncias.

É, pois, imperioso que o MP se transforme rapidamente numa magistratura hierarquizada e responsável (como estabelece a Constituição), cujos magistrados passem a agir apenas em representação do Estado, deixando de actuar em função de outros interesses que não sejam os da República de que são procuradores. Por fim, a proposta do Governo introduz ainda a figura do "suspeito", sem definir o seu perfil processual. Assim, além do arguido, do assistente e das partes civis, aparece agora o "suspeito", sem que se saiba os direitos de que é titular e os deveres a que está sujeito.

Enfim, como em Portugal o processo penal se transformou num verdadeiro Direito Penal do Espectáculo, os "suspeitos" processuais talvez sejam os arguidos na comunicação social, ou seja, as pessoas que são constituídas arguidas pelos órgãos de informação.

Está em curso na Assembleia da República mais uma revisão do Código de Processo Penal. Trata-se de uma proposta legislativa apresentada pelo Governo que revoga parcialmente a reforma de 2007. Algumas das alterações propostas não suscitam grandes reparos, mas outras são preocupantes e devem ser rejeitadas.

A primeira tem a ver com a possibilidade de o Ministério Público e a Polícia poderem efectuar detenções fora de flagrante delito. A lei ainda em vigor valoriza o papel do Juiz de Instrução e obriga a determinados procedimentos. É uma solução equilibrada porque num estado de direito só um juiz deve poder retirar a liberdade a uma pessoa, mesmo que transitoriamente. Fora de flagrante delito e salvo algumas excepções pontuais, as detenções devem ser sempre autorizadas por um Juiz.

O que acontece é que o MP e a Polícia querem poder deter livremente qualquer pessoa. E, em vez de pedirem o competente mandado de detenção ao juiz, alguns procuradores e alguns polícias preferem ir para os órgãos de comunicação social dizer que os criminosos ficam à solta porque a Polícia não pode os pode deter.

Se esta alteração for aprovada vamos voltar a ter detenções por puro exibicionismo mediático ou para achincalhamento público dos detidos. Vamos ter de volta o espectáculo das detenções em directo para as televisões, de preferência em prime time.

Outra proposta de alteração prevê que os detidos em flagrante delito possam estar até 48 horas sem ser apresentados ao Juiz de Instrução. Ora, o Estado tem o dever de garantir que qualquer cidadão privado da liberdade tenha acesso imediato a um juiz que decida sobre a legalidade da detenção.

Não é indiferente que uma pessoa seja presente a um juiz imediatamente após a detenção ou apenas depois de estar mais de 40 horas num calabouço, sem cinto, sem cordões dos sapatos, sem objectos pessoais, muitas vezes sem dormir e até sem se alimentar devidamente. O estado físico e psicológico com que uma pessoa aparece diante do juiz não é irrelevante em termos processuais. E o MP sabe isso.

A proposta do Governo admite também a possibilidade de o MP voltar a poder recorrer das decisões dos Juízes de Instrução que não apliquem as medidas de coacção por si requeridas. Essa é uma opção que também deve ser rejeitada. O MP não pode, por um lado, querer o estatuto de magistratura a quem não se aplicam muitos dos deveres e restrições que oneram as partes processuais e, por outro lado, quando lhe convém, agir como se fosse uma parte processual. Como garante da legalidade o MP só deveria poder recorrer (mesmo que em benefício do arguido) das decisões que violassem ostensivamente as leis da República. Mas nunca para pôr em causa a interpretação e a ponderação que um juiz faça dos factos.

Além disso, em certos casos, a alteração proposta pode impedir que o arguido recorra da decisão que o submete uma medida tão grave como é a prisão preventiva, quando esta lhe for aplicada pelo Tribunal da Relação com base em recurso interposto pelo MP da decisão do Juiz de Instrução que rejeitara essa medida.

Infelizmente, a generalidade dos magistrados do MP não actua em representação do Estado mas sim de si próprios. Senão atente-se naquelas situações em que no mesmo processo, perante os mesmos factos, com as mesmas provas e a mesma lei, o magistrado do MP na 1ª instância tem, em representação do Estado, uma certa posição, mas o colega na 2ª instância, em representação do mesmo Estado, já tem uma posição oposta e, por vezes, no STJ (ou no Tribunal Constitucional) um outro Procurador, ainda em representação do mesmo Estado, vem a assumir uma posição completamente diferente das dos seus colegas das instâncias.

É, pois, imperioso que o MP se transforme rapidamente numa magistratura hierarquizada e responsável (como estabelece a Constituição), cujos magistrados passem a agir apenas em representação do Estado, deixando de actuar em função de outros interesses que não sejam os da República de que são procuradores. Por fim, a proposta do Governo introduz ainda a figura do "suspeito", sem definir o seu perfil processual. Assim, além do arguido, do assistente e das partes civis, aparece agora o "suspeito", sem que se saiba os direitos de que é titular e os deveres a que está sujeito.

Enfim, como em Portugal o processo penal se transformou num verdadeiro Direito Penal do Espectáculo, os "suspeitos" processuais talvez sejam os arguidos na comunicação social, ou seja, as pessoas que são constituídas arguidas pelos órgãos de informação.

"JORNAL DE NOTÍCIAS"
28/03/10

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