Baptista Bastos As lembranças afectuosas b.bastos@netcabo. Enquanto vão desfilando, pelo Parlamento, alguns simpatizantes de jornalismo, numa desvergonha que só os não atinge porque as suas caras já estão encharcadas de porcaria - enquanto isso, lembro-me, agora, do Café Chiado, e da importância que teve essa cultura de tertúlia que formou os melhores de todos nós. Quase em frente da Rua Ivens, o belo estabelecimento possuía cadeiras de palhinha, as mesas eram redondas, de mármore, debruadas a latão doirado, e havia jornais para ler. Foi um dos pontos de encontro mais importantes da vida cultural e política portuguesa. Em mesas diversas e em horas diferentes lá se amesendavam Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Manuel Mendes, Carlos de Oliveira, Manuel Ribeiro de Pavia, Gustavo de Castro, Mira Fernandes, jornalistas, arquitectos, músicos, poetas, cientistas. Quando descia a Lisboa, Eugénio de Andrade encontrava-se ali com os seus amigos. Quando Álvaro Cunhal foi julgado, na Boa Hora, o velho café encheu-se a transbordar. Recordo-me de ver Maria Barroso, muito nova, muito bela, agitada por essa indignação que nos assaltava a todos. Claro que nestas memórias amenas perpassam figuras admiráveis que o tempo fez cair no esquecimento, mas nem por isso deixam de ser o que foram e de ter a importância que tiveram. Temos a pecha de matar duas e três vezes aqueles que, afinal, moldaram a greda da nossa consciência e ajudaram a pátria a ser livre, mesmo quando sequestrada pelo fascismo. E o Café Chiado constituía, feitas as contas, uma plataforma modesta da liberdade desejada. Os esquecidos quase formam multidão. Entre estes, Leão Penedo e Rogério de Freitas. Usavam camisola de gola alta, à maneira dos anos 50 e 60, e haviam montado uma editora, a Artis, a qual, como o nome indica, publicava belas edições artísticas. Foi lá que Mário Dionísio fez sair o seu belíssimo "Portinari", um primoroso ensaio sobre o imenso artista brasileiro Cândido Portinari. Leão Penedo, antes desta sua actividade, dedicara-se a adaptar a livro o conteúdo de grandes filmes. Nesta tarefa era coadjuvado por Gentil Marques, algarvio como ele. A Artis estava instalada na Rua das Taipas, num rés-do-chão onde, mais tarde, serviu de atelier a Rolando Sá Nogueira. Curiosamente, nesse prédio, viveram, em épocas separadas o actor e pintor José Viana e o açor e encenador Fernando Gusmão. Penedo e Freitas estavam ligados ao movimento neorealista, e publicaram volumes de ficção que obtiveram nomeada e êxito comercial. Por exemplo: "Tempo de Angústia", de Rogério de Freitas, foi, durante anos seguidos, o maior best-seller do Círculo de Leitores. E "Circo", de Leão Penedo, um grosso volume, serviu de base ao filme "Saltimbancos", de Manoel Guimarães. Havia uma relação muito intensa entre literatura e cinema e houve até casos, como "O Trigo e o Joio", de Fernando Namora, cinematizado por Guimarães, no qual o escritor Manuel da Fonseca interpretou um pequeno papel. Não são escritores muito importantes. Mas neles reside uma certa procura de originalidade e a constância de darem testemunho de uma época terrível. Devo dizer que os livros de Rogério de Freitas e de Leão Penedo (assim como os de outros mais, como os de Romeu Correia, Antunes da Silva, Garibaldino de Andrade) mereciam uma revisitação crítica, onde a empatia se substituísse ao desprezo e ao ódio ideológico. Alguns desses textos constituiriam grandes surpresas, pela qualidade que revelam, certamente muito superior à de numerosos autores, tão indecentemente propagandeados. Rogério de Freitas fora, muito miúdo, com o pai, para Paris, onde viveu até à idade madura. O português que conhecia era rudimentar: nunca frequentara a escola. Na capital francesa envolvera-se no bulício do Quartier Latin, aprendera belas-artes e artes gráficas, fora amante de Marlene Dietrich, regressara a Portugal, para trabalhar, como paginador, na revista "Eva", dirigida por uma grande senhora do jornalismo, Carolina Homem Christo. Era um homem baixo, de tez escura, cabelos ralos e brancos, e detentor de uma sabedoria de vida e literária que surpreendia aqueles com quem se rodeou. Morreu com mais de 90 anos, funcionário da secretaria de Estado da Cultura, numa função que lhe fora destinada por David Mourão-Ferreira. Leão Penedo era um homem distintíssimo, casado com uma mulher lindíssima. Era um par muito notado no Chiado. Um dia, Penedo foi atingido por uma doença cerebral estranha: ouvia, sem perceber, o que se lhe dizia, e ia quase todos os dias às matinés dos cinemas. Não percebia nada do conteúdo dos filmes, mas não desistia nunca de os ver, sempre acompanhado da mulher. Quanto a Romeu Correia, que também aparecia no Café Chiado, fora empregado bancário anos a fio, era um homem generoso e bom, autor de alguna romances marcantes, "Trapo Azul" ou "Calamento", de grandes tiragens. Romeu Correia é, igualmente, um dramaturgo de mérito, com especial relevo para a peça "Jangada", sobre a CUF e as suas origens. Estes homens modestos e grandiosos fazem parte do historial da nossa cultura. Como todas as culturas, a nossa é uma cordilheira, com picos altos e outros mais baixos. Mas fazem todos parte da mesma cordilheira. E eram todos homens de grande decência e probidade exemplar. Ao assistir aos depoimentos dos chamados ao Parlamento lembrei-me de convocar à memória estes nomes intactos e estes exemplos admiráveis - como limpeza moral à falta de asseio circundante. Para partilhar com os meus Dilectos as lembranças afectuosas. in "JORNAL DE NEGÓCIOS" 26/02/10 |
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