25/11/2009

JOSÉ CARLOS DE VASCOCELOS


"SUCATEIROS VÁRIOS"

sempre que surge um escândalo destes há muita agitação, vozearia e depois
fica tudo na mesma

Sem surpresas, incluindo no resultado final, que o bom senso impunha, o debate do Programa de Governo mostrou o novo tom e a nova retórica do Executivo e das oposições, no actual quadro parlamentar. Na nova retórica avulta, por parte do Governo, o facto de Sócrates esgrimir muito o argumento de nenhum dos partidos ter aceite a proposta, que fez a todos, de um eventual acordo para assegurar a governabilidade. Ora, fazer indistintamente, a todos, tal proposta, tirou-lhe peso e significado políticos, podendo parecer um acto apenas formal para "usar" como já muito usou: e quanto mais usar, mais dará essa ideia...

E avulta, por parte das oposições, a insistência em que a perda, pelo PS, da maioria absoluta, significou a condenação das políticas do anterior Governo, insinuando que as que defendem passaram a ter mais legitimidade. O que de todo carece de fundamento. O essencial da base das políticas, o ponto de partida, continua democraticamente a ser do PS: mas agora nada garante seja esse o ponto de chegada. E não se justifica diabolizar sempre as "coligações negativas"... Num Parlamento que passou a ser, agora sim, o verdadeiro centro da vida política, não apenas a nível simbólico, espera-se menos retórica, melhor dialéctica e sobretudo mais eficácia, sem novas insuportáveis cassetes.

O caso Face Oculta representa mais um murro no estômago da democracia portuguesa. Desta vez é a corrupção nos negócios, que há muito se diz serem uma mina, da sucata. Sem antecipar juízos e muito menos condenações, aqui aparecem, como de hábito, várias espécies de "sucateiros" - de profissão e vocação, do mundo da política e de empresas. Há, também como de hábito, muita gente preocupada com a violação do segredo de Justiça. E com razão. Neste momento pode haver inocentes a serem condenados na praça pública. Também por isso a Justiça tem de ser célere e os processos chegar ao fim em tempo útil.

Sem esquecer que uma eventual absolvição também não tem de significar inocência: por isso defendo que nestes casos o mais importante pode não ser o desfecho dos processos, mas o conhecimento exacto dos factos e comportamentos neles apurados. Para que os cidadãos possam formar o seu juízo e saber se tais figuras têm ou não idoneidade para exercer cargos públicos e outros que exigem estar-se acima de qualquer suspeita.

Mas se me preocupa aquela hipótese, não menos me preocupa tudo que este Face Oculta revela e significa. E que não é novo, na tão óbvia como badalada promiscuidade entre política partidária, cargos em grandes empresas, negócios, favores, etc. Sempre que surge um escândalo destes há muita agitação, vozearia, e depois fica tudo na mesma. Ora, penso que de imediato se impõe:

1) A alteração legislativa para criminalizar o enriquecimento ilícito, que há muito devia ter sido feita e não foi porque o PS se opôs, sendo de "mau gosto" vir dizer que não se deve fazê-la agora em função deste caso. O facto de nele aparecerem pessoas ligadas ao partido mais obrigação lhe dá de aprovar a adequada legislação, que não tem de implicar uma inversão do ónus da prova. E se o PS se mantiver contra, aí está uma boa oportunidade para o que só ironizando se poderá chamar uma "coligação negativa";

2) Concretizar as mudanças penais e processuais indispensáveis para prosseguir com êxito o combate à corrupção, entre as quais várias defendidas pelo Ministério Público, bem como outras em tempos propostas por João Cravinho;

3) Analisar em profundidade as causas, os procedimentos e expedientes que fazem arrastar estes (e outros...) processos indefinidamente - e tomar, com coragem, as medidas adequadas a, se não resolver, pelo menos minorar tal gravíssimo problema.

E há mais, que aqui não cabe. Já agora, é necessário que os operadores judiciários estejam à altura das circunstâncias, até para clarificar as questões. O que nem sempre acontece: mesmo altos responsáveis das magistraturas, para já não falar de advogados, falam de mais e explicam ou esclarecem de menos.

in "VISÂO" a 12/11/09

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