27/08/2009

MIGUEL PACHECO

O PS, Belém, e as uniões de facto

Publicado em 25 de Agosto de 2009 no jornal "i"

Não é mais um episódio numa relação conturbada. Nada disso. Há substância nas diferenças entre o PS E Belém. Ainda bem

Existem várias leituras possíveis do "não" de Cavaco Silva às uniões de facto - mais uma lei que o PS propunha como estruturante e que regressa ao Parlamento com o veto da Presidência da República.

O incidente pode ser interpretado como só mais um episódio na novela das más relações entre Belém e São Bento. É a leitura mais imediata e a menos interessante. Acreditar que um dilema institucional pode precipitar vetos desta ordem é esquecer que a questão é socialmente fracturante. Cavaco nem é conservador no argumento. Temer pelo excesso de obrigações nas uniões de facto é uma dúvida legítima. O Presidente até é liberal no pressuposto de que deve ser dado aos casais a possibilidade de escolherem entre um regime flexível - as uniões de facto - e um compromisso legalmente mais rígido - o casamento civil ou religioso.

Mas há outra leitura imediata: a de que os socialistas perdem em toda a linha com este veto. Nem tanto. Ao contrário do que pode parecer, o "não" de Belém ajuda o PS a acentuar o fosso que o separa da Presidência da República e - por inerência de valores - a aumentar a distância em relação ao PSD.

Os valores - mais do que a solução para a crise - serão o grande factor de diferenciação entre Ferreira Leite e Sócrates. Concorda com o casamento de homossexuais? E com a eutanásia? As uniões de facto são tão válidas como um casamento? Aliás: o que é o casamento? Serão estas as perguntas essenciais para a campanha que aí vem. São elas que diferenciam os líderes. Em Espanha, Zapatero fez o mesmo. Puxou pelas questões sociais para marcar os novos valores do PSOE. E foi puxando pelos valores que ultrapassou o PP.

A terceira leitura é a de que a Igreja já não conta muito para o Partido Socialista. Durante anos, António Guterres fez da matriz social-católica o argumento certo na transição entre o cavaquismo conservador e a terceira via liberal. O PS de Sócrates é diferente. O apogeu do Bloco de Esquerda e o novo eleitorado urbano colou-o ao Estado laico. As sugestões mais fracturantes deste governo (testamento vital, lei do aborto, casamento homossexual) são sinais da nova esquerda: liberal, laica, urbana. Segundo estimativas feitas a partir do último censo, 8 a 10% da população total vive hoje em união de facto. Há mais pessoas a viverem juntas sem estar casadas do que, por exemplo, eleitores a votar no CDS ou no BE.

É então natural que qualquer maioria no governo, pela representatividade que se impõe, avance com esta lei. Se é excessiva ou não, se o timing não é o melhor, isso já são contas políticas para a Presidência resolver. Cavaco acredita que o assunto merece uma discussão mais alargada, mesmo mantendo uma lei com falhas. E fá--lo com o argumento de que o debate precisa de equilíbrio, um contraponto de valores. Chumbar as uniões de facto tem o mérito de intensificar o debate na campanha que aí vem, mas também um grande senão: o problema só será resolvido na próxima legislatura. Provavelmente sem maioria.

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