16/05/2009

ANTÓNIO BARRETO


SÓCRATES E A LIBERDADE,

por António Barreto in "Publico"

EM CONSEQUÊNCIA DA REVOLUÇÃO DE 1974 , criou raízes
entre nós a ideia de que qualquer forma de autoridade
era fascista. Nem mais, nem menos.
Um professor na escola exigia silêncio e cumprimento dos
deveres? Fascista! Um engenheiro dava instruções precisas
aos trabalhadores no estaleiro? Fascista! Um médico
determinava procedimentos específicos no bloco operatório?
Fascista! Até os pais que exerciam as suas funções educativas
em casa eram tratados de fascistas.
Pode parecer caricatura, mas essas tontices tiveram
uma vida longa e inspiraram decisões, legislação e comportamentos
públicos.
Durante anos, sob a designação de diálogo democrático,
a hesitação e o adiamento foram sendo cultivados,
enquanto a autoridade ia sendo posta em causa.
Na escola, muito especialmente, a autoridade do professor foi
quase totalmente destruída.
EM TRAÇO GROSSO, esta moda tinha como princípio a liberdade.
Os denunciadores dos 'fascistas' faziam-no por causa da liberdade.
Os demolidores da autoridade agiam em nome da liberdade.
Sabemos que isso era aparência: muitos condenavam a autoridade
dos outros, nunca a sua própria; ou defendiam a sua liberdade,
jamais a dos outros. Mas enfim, a liberdade foi o santo e a senha
da nova sociedade e das novas culturas. Como é costume com
os excessos, toda a gente deixou de prestar atenção aos que,
uma vez por outra, apareciam a defender a liberdade
ou a denunciar formas abusivas de autoridade. A tal ponto
que os candidatos a déspota começaram a sentir que era fácil
atentar, aqui e ali, contra a liberdade: a capacidade de reacção
da população estava no mais baixo.
POR ISSO SINTO INCÓMODO em vir discutir, em 2008, a
questão da liberdade. Mas a verdade é que os últimos tempos
têm revelado factos e tendências já mais do que simplesmente
preocupantes.
As causas desta evolução estão, umas, na vida internacional,
outras na Europa, mas a maior parte residem no nosso país.
Foram tomadas medidas e decisões que limitam injustificadamente
a liberdade dos indivíduos. A expressão de opiniões e de
crenças está hoje mais limitada do que há dez anos. A vigilância
do Estado sobre os cidadãos é colossal e reforça-se. A acumulação,
nas mãos do Estado, de informações sobre as pessoas e a vida
privada cresce e organiza-se. O registo e o exame dos telefonemas,
da correspondência e da navegação na Internet são legais e ilimitados.
Por causa do fisco, do controlo pessoal e das despesas
com a saúde, condiciona-se a vida de toda a população e tornam-se
obrigatórios padrões de comportamento individual.
O CATÁLOGO É ENORME. De fora, chegam ameaças sem conta
e que reduzem efectivamente as liberdades e os direitos dos
indivíduos. A Al Qaeda, por exemplo, acaba de condicionar a vida
de parte do continente africano, de uma organização europeia, de
milhares de desportistas e de centenas de milhares de adeptos.
Por causa das regulações do tráfego aéreo, as viagens de avião
transformaram-se em rituais de humilhação e desconforto
atentatórios da dignidade humana. Da União Europeia chegam,
todos os dias, centenas de páginas de novas regulações e directivas
que, sob a capa das melhores intenções do mundo, interferem com
a vida privada e limitam as liberdades. Também da Europa nos veio
esta extraordinária conspiração dos governos com o fim de evitar
os referendos nacionais ao novo tratado da União.
MAS NEM É PRECISO IR LÁ FORA. A vida portuguesa oferece
exemplos todos os dias. A nova lei de controlo do tráfego
telefónico permite escutar e guardar os dados técnicos (origem e
destino) de todos os telefonemas durante pelo menos um ano. Os
novos modelos de bilhete de identidade e de carta de condução,
com acumulação de dados pessoais e registos históricos, são meios
intrusivos. A vídeovigilância, sem limites de situações, de
espaços e de tempo, é um claro abuso. A repressão e as
represálias exercidas sobre funcionários são já publicamente
conhecidas e geralmente temidas A politização dos serviços de
informação e a sua dependência directa da Presidência do
Conselho de Ministros revela as intenções e os apetites do
Primeiro-ministro. A interdição de partidos com menos de
5.000 militantes inscritos e a necessidade de os partidos enviarem
ao Estado a lista nominal dos seus membros é um acto de prepotência.
A pesada mão do governo agiu na Caixa Geral de Depósitos e no
Banco Comercial Português com intuitos evidentes de submeter
essas empresas e de, através delas, condicionar os capitalistas,
obrigando-os a gestos amistosos. A retirada dos nomes dos santos
de centenas de escolas (e quem sabe se também, depois, de instituições,
cidades e localidades) é um acto ridículo de fundamentalismo
intolerante. As interferências do governo nos serviços de rádio e
televisão, públicos ou privados, assim como na 'comunicação social'
em geral, sucedem-se. A legislação sobre a segurança alimentar e a
actuação da ASAE ultrapassaram todos os limites imagináveis da
decência e do respeito pelas pessoas. A lei contra o tabaco está
destituída de qualquer equilíbrio e reduz a liberdade.
NÃO SEI SE SÓCRATES É FASCISTA. Não me parece, mas,
sinceramente, não sei. De qualquer modo, o importante não está aí.
O que ele não suporta é a independência dos outros, das pessoas,
das organizações, das empresas ou das instituições. Não tolera ser
contrariado, nem admite que se pense de modo diferente daquele
que organizou com as suas poderosas agências de intoxicação a que
chama de comunicação. No seu ideal de vida, todos seriam
submetidos ao Regime Disciplinar da Função Pública, revisto e
reforçado pelo seu governo. O Primeiro-ministro José Sócrates é
a mais séria ameaça contra a liberdade, contra autonomia das
iniciativas privadas e contra a independência pessoal que
Portugal conheceu nas últimas três décadas TEMOS DE
RECONHECER: tão inquietante quanto esta tendência insaciável
para o despotismo e a concentração de poder é a falta de
reacção dos cidadãos. A passividade de tanta gente.
Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo...

António Barreto \ Público"


Apesar de este artigo ter sido publicado em 2008 a sua
actualidade é constante, nada mudou de então até hoje
e as inquietações expressas mantêm-se.


(um pensionista)

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