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08/04/2022
DOMINGOS DE ANDRADE
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O beijo do Papa. E a ONU?
Nas manchas enegrecidas daquela bandeira que o Papa Francisco beija, vinda da "cidade martirizada de Bucha", adivinham-se os gritos incontidos de uma mulher violada. Talvez 30, talvez mais, militares, que lhe entraram pela casa adentro e que dispuseram do corpo dela. E adivinha-se uma crueldade sem fim, nas palavras do Sumo Pontífice, cometida contra mulheres e crianças, contra civis. Corpos amarrados. Pais sem filhos. Filhos sem avós. Filhos órfãos. Famílias desfeitas.
O presidente russo reduziu a imagem do Exército de um país, o seu, a uma força de ataque a indefesos.
Após um mês de frustração militar, as tropas invasoras deixam um rasto de destruição enquanto tentam reorganizar o dispositivo militar em torno da redefinição do seu objetivo estratégico, que agora passou a ser a "libertação da região de Donbass".
Em fevereiro, para se evitar a escalada da guerra, e perante a ameaça nuclear de Putin, a NATO anunciava que não colocaria as suas "boots on the ground". A estrada ucraniana de Putin ficou assim livre para a barbárie. Resta a dúvida dolorosa: não se podia ter feito nada para impedir ou enfrentar a agressão e o crime?
Do trauma da II Guerra Mundial nasce a Carta das Nações Unidas, o articulado aspiracional que pretendia ser a arquitetura da Nova Ordem Internacional. Com uma missão inequívoca: prever e resolver conflitos entre estados, com o propósito de manter a paz. A ideia era banir a força da agressão e impor o primado da lei. Foram criadas ferramentas legais e um Conselho de Segurança guardião da paz, em que os membros têm direito de veto.
A Carta contempla o uso da força para casos de agressão e violação do direito internacional: Capítulo VII, artigos 39, 41 e 42. Cabendo aos membros permanentes do Conselho de Segurança deliberar sobre a aprovação e os termos do seu recurso.
A força foi usada depois disso. Em 1950, a ofensiva anfíbia de Incheon, liderada pelo general americano Douglas MacArthur, respondeu à invasão de Kim Il-Sung no território que hoje conhecemos como Coreia do Sul. E foi realizada sob bandeira da ONU (resolução 83). Então, a União Soviética e a China apoiaram militarmente o líder comunista coreano, tendo o exército de Mao combatido ao lado de Kim, contra as forças de MacArthur.
A resolução só foi aprovada por uma razão: o ocaso da Guerra Civil Chinesa. A ONU reconhecia a República da China (nacionalista) como membro permanente do Conselho de Segurança. O reconhecimento internacional da República Popular da China (Comunista) ocorreu apenas em 1971, o que originou o boicote Soviético ao seu funcionamento.
Foi assim, por entre o barulho das luzes e sob iniciativa dos Estados Unidos, debaixo da bandeira da ONU, que se legitimou o uso da força na Coreia para garantir o cumprimento do direito internacional. Caso contrário, Seul ainda hoje conviveria com as estátuas da dinastia Kim.
O que a invasão de Putin nos demonstra parece óbvio: um Estado que seja membro permanente do Conselho de Segurança poderá viver em paz, e até brincar às invasões, ou cometer crimes de guerra sem consequências de maior.
Para que serve então hoje a ONU?
* *Diretor-Geral Editorial
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 07/04/22.