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Pondo de lado a parte caricatural do acontecimento, o que está em causa é muito sério. Não se pode aceitar que o relatório, de tão relevante e evidente interesse público, seja objecto das reservas impostas pelo Banco de Portugal.
No dia 10 de Março ocorreu no Parlamento um episódio notável e significativo: discutiu-se publicamente, entre deputados e o Dr. Costa Pinto1, um relatório secreto sobre a resolução do BES concluído em Abril de 2015. O relatório, mandado elaborar pelo Banco de Portugal, estava destinado a ter a mais ampla divulgação, mas, inesperadamente, após a sua conclusão, foi decidido mantê-lo secreto. Apesar de várias tentativas, de diversas origens, de tornar público o documento, a situação de secretismo manteve-se até hoje, apesar da divulgação ocorrida - com apertadas salvaguardas - a um restrito número de deputados.
O episódio parlamentar teve aspectos caricatos, com os intervenientes a tentar discutir e usar no debate, que era público, um documento que estão impedidos de divulgar. Assim, apesar do secretismo imposto, já se conhece boa parte do conteúdo do relatório, embora não o suficiente para uma boa apreciação das respectivas conclusões.
Pondo de lado a parte caricatural do acontecimento, o que está em causa é muito sério. Não se pode aceitar que o relatório, de tão relevante e evidente interesse público, seja objecto das reservas impostas pelo Banco de Portugal.
Sobre o relatório, o Banco de Portugal só divulgou um comunicado2 com 10 páginas, sem conclusões e apenas com uma "síntese das recomendações" num quadro de sete páginas com 19 recomendações. Estas visam duas vertentes: "Práticas de supervisão" (oito recomendações) e "regulamentação e legislação" (11 recomendações). As recomendações retidas repetem, constantemente, as ideias de "aplicação de forma estrita", de "não tolerar falta de esclarecimentos" e de "propostas de legislação". O que se pretendeu passar - infelizmente com assinalável êxito - foi a simplória e errónea ideia de que falharam apenas os instrumentos e o exercício de constrangimentos públicos sobre a gestão do grupo financeiro.
A necessidade de divulgação pública do relatório não pode deixar de ser fortemente enfatizada. Devo sublinhar duas razões principais.
Primeiro, passados quase sete anos sobre a resolução do BES, o conhecimento global e público dos acontecimentos é ainda altamente insuficiente e em muitos casos enganador. O relatório, embora não deva ser mitificado, é importante para aclarar alguns aspectos essenciais da queda do grupo financeiro.
Segundo, a ocultação do relatório é muito reveladora da fragilidade do sistema financeiro e de insegurança dos poderes públicos. Este secretismo é indutor de desconfiança e de instabilidade, que seria suposto o banco central e os poderes públicos evitarem. Isto é particularmente grave no período que agora se vai seguir, quando se revelarem os impactos da pandemia sobre o sistema financeiro, onde as actuações do banco central e do governo vão ser decisivas. Se - como tudo indica - se pretende ocultar a leviandade com que se actuou no episódio da resolução do BES, o receio é fundado de que os mesmos erros se repitam em breve quando se revelar a verdadeira situação de fragilidade a que a pandemia conduziu a banca. (As cândidas afirmações de vários responsáveis garantindo a actual solidez são verdadeiro mau agoiro, fazendo lembrar o então coro de garantias longamente repetidos na anterior pré-crise.)
A atribulação do relatório mostra bem a forma leviana como se supervisiona a banca, tirando campo de manobra aos agentes de mercado, desresponsabilizando-os e manietando-os com pesados constrangimentos, erráticos umas vezes, contraditórios outras e frequentemente de efeitos contrários ao pretendido.
O perigo que espreita o sistema financeiro continua enorme. As lições relevantes que se poderiam tirar do episódio da resolução do BES - que o relatório secreto pode ajudar a ilustrar - ainda não foram assumidas pelos decisores. A integração financeira europeia, embora tenha progredido um pouco desde então, não é garantia suficiente de estabilidade.
1O Dr. Costa Pinto, interlocutor dos deputados, foi o presidente da "Comissão de Avaliação às Decisões e à Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo S.A." que elaborou o atribulado relatório.
2Ver: "Comunicado do Banco de Portugal sobre as recomendações da Comissão de Avaliação às Decisões e à Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo S.A." (https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/documentos-relacionados/combp20150604.pdf)
* Economista e professor no ISEG
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 30/03/21
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