Cansados de blogs bem comportados feitos por gente simples, amante da natureza e blá,blá,blá, decidimos parir este blog do non sense.Excluíremos sempre a grosseria e a calúnia, o calão a preceito, o picante serão ingredientes da criatividade. O resto... é um regalo
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A crise pandémica e
a privacidade dos trabalhadores
A profilaxia no âmbito laboral não deverá colidir com os direitos de personalidade dos trabalhadores.
Muito se tem escrito nos últimos meses sobre o advento de uma "nova
normalidade" com a crise pandémica, mas em poucos domínios essa
disrupção foi tão acentuada como no trabalho.
A forma de prestar e de receber o trabalho sofreu várias e profundas
alterações nos últimos meses: umas resultaram da farta - mas nem sempre
feliz - produção legislativa com impacto laboral, outras da - por vezes
excessiva - proatividade dos agentes envolvidos.
Assistimos a uma vaga sem precedentes de teletrabalho, acompanhada da
necessidade de um rápido e musculado reforço das tecnologias de
informação e comunicação das empresas; a uma "flexibilização" do tempo e
do local de trabalho, quando não mesmo dos meios; à pressão inédita
sobre os empregadores para assegurar a proteção da segurança e da saúde
dos trabalhadores; entre outras importantes transformações.
O balanço do que se foi ganhando e perdendo em resultado destes
fenómenos poderá ser difícil de fazer e carecerá de um maior
distanciamento temporal, mas certo é que, num esforço para responder aos
desafios da crise pandémica e para regressar à "normalidade" nas
empresas, avançaram-se soluções e medidas que não podem deixar de nos
fazer questionar se não estaremos (também) perante uma crise da
privacidade dos trabalhadores.
Uma dessas reações à pandemia, no domínio laboral, foi a da
implementação da hetero-medição de temperatura corporal aos
trabalhadores para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho.
Rapidamente surgiram queixas de trabalhadores e sindicatos que
suscitaram, entre outros, perante a Comissão Nacional de Proteção de
Dados (CNPD) a legalidade deste tipo de controlo, realizado fora do
âmbito da medicina no trabalho, podendo ser feito diretamente pelo
empregador ou por quem este designe (na prática, tantas vezes conduzido,
por exemplo, pela segurança privada das empresas).
Não fossem o receio - justificado e generalizado - da crise sanitária e a
necessidade de manter ou retomar a atividade, e talvez se tivesse
refletido mais detidamente no precedente que se criava, aprovando e
promovendo uma medida que frontalmente contraria as normas de proteção
da intimidade da vida privada e dos dados pessoais dos trabalhadores,
previstas no Código do Trabalho.
Mesmo em desenvolvimentos legislativos mais recentes, embora se mantendo
a proibição do registo da temperatura corporal associado à identidade
da pessoa (salvo se houver prévia autorização dos trabalhadores), o
sentido compressivo dos direitos de personalidade manteve-se,
permitindo-se que a medição seja realizada por quem não seja ou não
esteja sob a responsabilidade de um profissional de saúde, sujeito a
sigilo profissional.
Paralelamente, tem-se verificado que muitas empresas se disponibilizam
para custear a realização de testes de diagnóstico de SARS-CoV-2 aos
seus trabalhadores. Assumindo que também os trabalhadores têm interesse
em saber se estão ou não infetados e, nessa medida, aderem livremente à
sua realização (liberdade essa que, no âmbito da relação laboral, pode
estar fragilizada), o que não poderá ocorrer é que os empregadores
tenham acesso aos resultados desses testes. No entanto, sabemos que a
CNPD tem recebido queixas de trabalhadores que conhecem os resultados
dos seus testes pelo empregador, o que afronta as disposições legais em
matéria de privacidade dos trabalhadores e de tratamento de dados
sensíveis, como são os dados de saúde.
Alguns empregadores têm vindo a conduzir questionários periódicos
relativos não só a sintomas de covid-19 (febre, tosse, …), como também
sobre as últimas viagens realizadas pelos trabalhadores e respetivas
datas, por vezes incluindo questões relativas ao agregado familiar e a
outros contactos. Estas práticas comprimem, uma vez mais, o direito à
reserva da intimidade dos trabalhadores, sendo imperativo que as
informações (adicionais) relativas à saúde, mesmo quando se admita a sua
solicitação pelo empregador, o seja por intermédio de médico.
Não há dúvidas de que o objetivo, quer do legislador, quer dos
empregadores, com a adoção destas e de outras medidas (como seja a
implementação de aplicações móveis do tipo StayAway Covid a um nível
empresarial) é bem-intencionado, visando, no mais das vezes,
salvaguardar a saúde dos trabalhadores e criar um ambiente de confiança e
de tranquilidade nas empresas. No entanto, urge avaliar como acomodamos
a privacidade e a proteção dos dados pessoais durante esta crise
pandémica, sob pena de criarmos perigosos precedentes.
A profilaxia no âmbito laboral não deverá colidir com os direitos de personalidade dos trabalhadores.
* Advogada
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 03/12/20
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