1. Em 2008, num ato
falhado, Manuela Ferreira Leite, então presidente do PSD, falando da
dificuldade de fazer reformas em regime democrático, atirou, para
escândalo geral, e indignação da esquerda em particular, a seguinte
frase: “Não sei se, a certa altura, não é bom haver seis meses sem
democracia; mete-se tudo na ordem e depois, então, venha a democracia”.
Doze
anos depois, António Costa, primeiro-ministro de um governo PS, está a
procurar levar estas palavras à prática, a propósito do combate à
pandemia originada pela Covid-19.
2. É inacreditável que o Governo pretenda impor aos cidadãos, através de lei específica, o descarregar de determinada app
nos seus telemóveis, tornando-a uma exigência que, não sendo cumprida,
originaria multas até 500 euros. Mais do que inacreditável é inaceitável
– e é, ainda, uma enormidade política, coisa terceiro-mundista.
Aqui não há esquerda e direita. Há ou não há liberdade. Nenhum argumento de saúde pode justificar o desvario.
Esta
proposta choca de frente com o direito das pessoas à privacidade e a
gerirem as respetivas vidas. Nem sequer a pandemia em curso explica o
gesto governamental de autoritarismo ‘à moda da China’, indigno num país
da Europa.
Noutra dimensão, faria sentido que o Governo
aconselhasse, explicasse, até educasse, no sentido das pessoas poderem
decidir-se perante o uso de determinadas proteções. A tal app pode ser uma delas. Mas nunca o Estado deveria sequer pensar substituir-se ao indivíduo na tomada da decisão. O limite é esse.
3.
Vai ser interessante perceber como todos os partidos irão lidar com a
proposta, a começar pelo PS, o partido que gosta de se reclamar das
liberdades. No Parlamento vamos poder comprovar as diversas leituras
deste desvario à luz da Constituição da República, tantas vezes invocada
quando dá jeito. Estamos perante o teste supremo ao colaboracionismo de
Rui Rio. E também será interessante saber o que pensa, e fará, o
Presidente da Republica se, por acaso, a geringonça adormecida funcionar
a favor das suas ancestrais palpitações.
4. Até
agora só ainda vi um sinal de esperança e racionalidade: a Comissão
Nacional de Proteção de Dados (CNPD) promete opor-se, por questões
jurídicas e éticas. As jurídicas relativas à privacidade dos cidadãos;
as éticas tendo a ver com a capacidade financeira das pessoas terem
acesso aos telemóveis capazes de suportarem a aplicação StayAwayCovid,
que numa primeira fase era para ser, como todas as outras, de utilização
voluntária.
O Tribunal Constitucional, que recentemente
considerou inconstitucional a decisão do Governo Regional dos Açores de
impor uma quarentena obrigatória a quem chegasse à região autónoma,
também deve ir começando a preparar-se para este novo dossiê.
5.
Melhor andaria o Governo em cumprir com as suas obrigações. Proibir e
obrigar é fácil. Difícil é arranjar solução para os portugueses que
todas as manhãs viajam enlatados nos comboios e autocarros do país,
sobretudo nas metrópoles de Lisboa e Porto; defender os lares de
terceira idade, onde vivem as pessoas mais vulneráveis perante a doença;
criar espaço, em sintonia com o SNS e os diversos sistemas privados,
para o tratamento adequado de quem sofre de outras doenças e não
consegue assistência. Isso, sim, seria governar.