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O falso herói
Trump, perante as câmaras, pode armar-se em herói, mas um herói verdadeiro nunca deixaria morrer mais de 200 mil compatriotas, por incúria. E, ao tirar a máscara, de forma desafiante, sabe-se lá quanto mais não atirou também para a morte
A sucessão de contágios no círculo próximo de Donald Trump poderia
ser exibida como um manual perfeito para explicar como se propaga o
vírus da Covid-19. Em especial entre pessoas que convivem diariamente
nos mesmos espaços e que, com frequência, contactam com outras no
exterior, sem respeitar as mais elementares regras de segurança. Apesar
do crescimento inegável da pandemia em todas as latitudes, grupos
etários e classes sociais, para quem ainda tinha dúvidas sobre a
necessidade de higienizar as mãos, usar máscara, manter distâncias de
segurança e, em caso de infeção, poder ter acesso a testes rápidos e a
um rastreio de qualidade em busca de todas as pessoas com quem contactou
nos últimos dias, o exemplo de Trump e da sua West Wing é por demais
esclarecedor. Quem continuar a achar que a Covid-19 é apenas mais uma
“gripezinha” e que, um dia, desaparecerá “por magia”, como afirmaram os
Presidentes do Brasil e dos EUA, teve no último fim de semana a prova da
hipocrisia desses argumentos: logo que Trump e muitos dos membros do
seu círculo restrito foram dados como positivos, de imediato foram
acionados todos os alarmes e reunidos todos os meios – mesmo os mais
excecionais ao nível médico, a fazer fé em alguns relatos – para tentar
salvar o Presidente.
No entanto, o exemplo dado pelo atual Presidente dos EUA consegue ser
também muito mais aterrador, por aquilo que transmite e representa: o
desrespeito absoluto por quem está próximo dele (nomeadamente os muitos
funcionários da Casa Branca, bem como o grupo de jornalistas que a
frequenta e onde cresceu, nos últimos dias, o número de casos positivos)
e o desprezo pelo drama das famílias das mais de 200 mil vítimas
mortais da doença, numa América liderada por um homem que, desde o
início, sempre menosprezou a ameaça, desqualificou os avisos dos
cientistas e se opôs a todas as medidas de distanciamento social para
evitar o contágio.
Frente à pandemia, Donald Trump sempre quis arvorar-se numa espécie de
Capitão América, como se tivesse passado décadas congelado e, com isso,
imune ao vírus. Tentou transmitir também essa ideia quando regressou à
Casa Branca, após dias em observação hospitalar, e tirou a máscara para
as objetivas dos fotógrafos, arvorando-se em herói indestrutível. Só que
a vida, como sabemos, não é um filme da Marvel. Trump, perante as
câmaras, pode armar-se em herói, mas um herói verdadeiro nunca deixaria
morrer mais de 200 mil compatriotas, por incúria. E, ao tirar a máscara,
de forma desafiante, sabe-se lá quanto mais não atirou também para a
morte.
IN "VISÃO" - 08/10/20
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