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Quanto vale
um abraço de Lula?
Todos os domingos, o bolsonarismo, ao jeito de Odorico Paraguaçu, o
prefeito de Sucupira criado por Dias Gomes, organiza uma "manifestação
espontânea" na Praça dos Três Poderes para celebrar o seu chefe e, a
julgar pela aglomeração de desmascarados, também o Covid-19.
Citando
Sérgio Moro são "tão loucos mas tão poucos" que já quase dá para
identificar um a um os manifestantes - a senhora de óculos e de cachecol
verde e amarelo, o senhor histérico com calças da tropa, o grupo que
carrega faixas contra o Supremo Tribunal Federal ou a galera do cartaz a
pedir intervenção militar.
A única cara nova na última
manifestação foi a do cavalo que a páginas tantas, meio constrangido,
teve de carregar Bolsonaro no lombo.
Mas, hoje em dia, já
não há muito mais a escrever sobre o regime do capitão Jair, dos filhos
01, 02 e 03 e dos outros zeros à esquerda que o apoiam: qualquer texto
sobre o governo soará mais a autópsia do que a crónica.
O foco no Brasil de hoje é no amanhã.
Com a justiça a mexer-se - há 36 pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados, as denúncias de Moro e o disparo em massa de fake news
na campanha seguem os seus trâmites, respetivamente, na polícia federal
e no Tribunal Superior Eleitoral - e a economia parada - no primeiro
trimestre, que incluiu apenas uma semana e meia de quarentena, o PIB já
contraía 1,5% - os protagonistas do pós-bolsonarismo sentiram que só
faltava reunirem-se num movimento, nas redes e nas ruas, para fechar o
caixão do governo.
Só que não surgiu um movimento. Surgiram muitos. E muito diferentes.
Com
milhares de signatários dos mais variados credos políticos, entre os
quais o apresentador liberal Luciano Huck, o governador comunista do
Maranhão Flávio Dino, o ex-candidato presidencial Fernando Haddad ou
ex-ministro da saúde até abril passado Luiz Henrique Mandetta, todos com
pretensões eleitorais.
A ideia é recriar o clima
abrangente do "Diretas Já", o movimento que acelerou o fim da ditadura
militar e o regresso a democracia nos anos 80.
Para se
ter uma ideia de como o presidente uniu o país contra si, até o
pornográfico deputado federal Alexandre Frota, outrora um "soldado de
Bolsonaro", segundo as suas próprias palavras, se disse nesta semana
disposto a "ir para a guerra" com Lula da Silva.
Resta saber com
quem Lula quer ir à guerra. "Quem está ao nosso lado na trincheira
importa mais do que a própria guerra", é uma frase atribuída a
Hemingway.
Ora, o antigo sindicalista despejou um balde de água fria na oposição em live com
companheiros do Partido dos Trabalhadores no início da semana ao
afirmar que "os manifestos tem pouca coisa de interesse para a classe
trabalhadora" e que não tem "condição de assinar documentos com determinadas pessoas".
A
ideia geral na oposição é que Lula, que saiu da presidência em 2010 com
87% de aprovação popular, e liderava, apesar das pendências jurídicas, a
corrida eleitoral de 2018 com avanço confortável, tenta vender o seu
abraço aos movimentos ao melhor preço possível.
Entende-se. Mas quanto vale hoje um abraço de Lula?
Tendo em conta que durante a sua presidência abraçou o MDB,
o partido que é a cara da corrupção no Brasil, em nome da
governabilidade, que, pelos mesmos motivos, fez as pazes com Collor de
Mello, que o acusara de ter tentado abortar a sua filha mais velha no
esgoto da campanha eleitoral de 1989 e que, às vésperas de 2012, apertou
a mão de Paulo Maluf, a personificação de tudo o que
sempre combateu, para garantir apoios na corrida à prefeitura de São
Paulo, talvez não valha tanto assim.
Lula terá toda a
razão em se sentir constrangido em abraçar quem contribuiu para derrubar
Dilma Rousseff em 2016, quem se omitiu na disputa entre a civilização e
a barbárie bolsonarista em 2018 e quem aplaudiu a sua prisão - mas o
seu passado de pragmático compulsivo condena-o a apoiar os movimentos de
2020.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
03/06/20
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