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O futebol não será o mesmo
sem aquele abraço
Isolados
mas não sozinhos, confinados mas não alheados. Num momento único na
história mundial, a capacidade de reflectir sobre as nossas experiências e
o que nos rodeia é, também, uma forma de liberdade.
Quase 60 dias de isolamento. Inimaginável esta separação com o mundo e principalmente com o meu mundo.
Devo
confessar que este afastamento me tem proporcionado alguns momentos de
uma egoísta felicidade que geralmente a minha profissão não me
proporciona. Momentos simples passados em casa, com a família.
O
tempo tem-me abraçado de uma forma calorosa junto da minha mulher e do
meu filhote mais novo. O tempo tem criado uma enorme saudade dos meus
outros dois filhos que estão em Portugal, assim como dos meus pais e
restante família. O tempo tem-me obrigado a pensar e reflectir de modo
diferente. Mas o tempo tem criado dúvidas e incertezas. Não sou dos que
afirmam veementemente que o mundo mudará completamente. Mas sou dos que
acreditam que existirão perdas a todos os níveis que jamais
recuperaremos.
Mas voltemos ao meu mundo, o do futebol. As páginas
esgotam-se e os ecrãs encenam sobre as imensas mudanças que aí vêm.
Textos e cenários são construídos de forma a realçar palavras como
oportunidade, mudança, calamidade, catástrofe, etc. Como o pessimismo e o
medo não tinham máscara, eu não os deixei entrar na minha casa neste
período de quarentena. E acredito que o meu mundo vai ficar mais forte e
unido que nunca. Mas até retornarmos é preciso tomar decisões imediatas
e tomá-las neste momento é quase como arbitrar um jogo sem apito e sem
cartões.
Em breve voltarei ao meu mundo. Finalmente. E dentro
daquilo que já se consegue perceber voltarei a um mundo que, a breve
prazo, será estranhamente, mas compreensivelmente, diferente. Protocolos
rigorosos transformam agora a nossa nova existência. Volto a afirmar,
compreensivelmente. Treinos individualizados, jogadores a equiparem-se
em casa ou nos quartos dos respetivos centros de treinos, proibição de
reuniões, etc. E quando voltarmos a jogar, mais uma série de medidas
devem ser respeitadas. Todas elas para que possamos viver em segurança.
Todas elas merecem a minha concordância. Mas custa-me muito imaginar...
imaginar jogar sem a paixão dos adeptos e principalmente jogar sem
AQUELE ABRAÇO.
Sim, AQUELE ABRAÇO com que festejamos o momento
máximo do futebol, o golo. O momento em que o jogador que concretiza é
esmagado no meio de tantos abraços. Ou o momento em que corre na direcção
de quem o consagrou para o abraçar e dedicar-lhe o golo. Eu como é que
vou celebrar? Já não abraçarei os meus assistentes como geralmente o
faço? Que emocionante tem sido a minha carreira na celebração desta
magia. E que momentos (golos) eu tive em que AQUELE ABRAÇO decidiu o meu
destino. No meu primeiro ano de Shakhtar e num jogo em que virámos de
0-2 para 3-2 nos últimos momentos do jogo, todos os jogadores me vieram
abraçar para festejar o último golo. Jamais esquecerei. E no Braga, com o
golo do Marcelo que nos deu a Taça. Jamais esquecerei. Ou no Paços, com
o golo do Manuel José que nos qualificou para a Champions. Ou agora na
Roma, com o golo do Dzeko em Bolonha no último minuto. São tantos golos
com AQUELE ABRAÇO que jamais esquecerei.
Como será sem AQUELE
ABRAÇO, no início ou no fim do jogo, ao treinador adversário. Aqui em
Itália são muitos aqueles a quem eu gosto de abraçar, por diversas
razões. Ou como será no momento de reconfortar os nossos jogadores, em
momentos difíceis, sem AQUELE ABRAÇO. E como será na hora das conquistas
de títulos e troféus sem AQUELE ABRAÇO. E como será olhar para as
bancadas sem vislumbrar AQUELE ABRAÇO entre os adeptos.
Mas devo
confessar que o mais difícil de imaginar é o balneário sem AQUELE
ABRAÇO. Talvez para quem nunca tenha partilhado este espaço sagrado seja
difícil de entender. Mas imaginem as toneladas de energia carregadas
com AQUELE ABRAÇO. Principalmente antes do jogo. Aquele simples gesto
que transmite o que as palavras não conseguem. São instantes de grande
importância para mim. A maioria dos jogadores percebe isso. Hoje tenho
comigo um jogador que entende e vive esse momento como ninguém, o Fazio.
Que abraço!! Quanta emoção!!! Que energia!! Incrível!! O futebol, tenho
a certeza, não será o mesmo sem AQUELE ABRAÇO.
Existem, neste
momento, tantos abraços com muito mais importância do que os abraços no
futebol, eu sei. E sei também que brevemente todos os abraços voltarão
com muito mais força e significado na nossa vida. E aí com todos os
outros abraços voltará AQUELE ABRAÇO. E o futebol continuará a ser o
mais apaixonante espectáculo deste planeta, como sempre foi.
IN "A BOLA"
13/05/20
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