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O domador de borboletas
Quando se sentia fatigada, a rainha estalava os dedos, e então as borboletas cobriam-na por inteiro, como uma cortina viva da mais pura seda, e ela, desaparecendo da vista dos presentes, reaparecia onde bem entendesse, a várias milhas de distância
António de Oliveira Cadornega nasceu em Vila Viçosa em 1623, numa
família de cristãos novos, mudando-se para Luanda aos 16 anos, como
militar. Ao longo das cinco décadas que se seguiram terminou, pouco a
pouco, por se transformar de colono em colonizado. Quando morreu, aos 67
anos, já falava e escrevia num belo português africano, enriquecido por
inúmeras palavras e expressões em quimbundo. Além disso, deixara-se
contaminar por um pensamento mágico, animista, que em tudo via (vê) o
sopro redentor dos ancestrais.
“Tem este gentio para si que alguns deles, com suas unturas
que têm de ervas e paus se transformam em leões e em onças, aos quais
chamam quifumbulas”, escreveu Cadornega na sua obra mais famosa, História Geral das Guerras Angolanas. Nesse mesmo livro, algumas páginas adiante, conta um episódio que terá testemunhado, envolvendo um destes quifumbulas.
Ainda mais curiosos são os casos que expõe na sua Relação dos Prodígios que Vi em Angola
(1687), manuscrito inédito, que encontrei por mero acaso esquecido
dentro de uma pilha de jornais angolanos do século XIX. Comprei os
jornais por um preço razoável a um velho alfarrabista do Recife.
Trouxe-os para casa e esqueci-me deles. Anos mais tarde, ao estudá-los,
encontrei o manuscrito com a assinatura de António de Oliveira
Cadornega, Vereador da Câmara de Loanda. Nunca duvidei da autenticidade
do documento, porque o estilo é o mesmo. A verdadeira assinatura de um
escritor é o seu estilo.
António de Oliveira Cadornega conheceu a rainha Nzinga Mbandi, ou
Ginga, correspondeu-se com ela, e dedicou-lhe as páginas mais
interessantes da sua História Geral das Guerras Angolanas. No
manuscrito, volta a falar de Ginga e dos quifumbulas. Segundo ele, um
dos maridos de Ginga, chefe dos jagas —guerreiros nómadas, que alugavam
as suas armas a quem melhor lhes pagasse —, contava entre as suas hostes
com uma unidade secreta, composta por doze quifumbulas.
Estes quifumbulas atacavam durante a noite, não na comum realidade
que todos partilhamos, mas infiltrando-se nos sonhos das tropas
adversárias. Os soldados inimigos sonhavam que um leão os perseguia, e
acordavam aos gritos, rasgando o peito com as próprias unhas. Poucos
recuperavam.
António de Oliveira Cadornega também conta que na
corte da rainha havia um alto dignitário, o Nganga diá Kimbiambia, que
tinha por única função criar e adestrar enormes borboletas
(entomologistas acreditam tratar-se de exemplares da espécie Papilio antimachus),
que esvoaçavam nobremente em redor da soberana enquanto ela
conferenciava com os macotas (conselheiros), ou recebia emissários
provenientes dos quimbos mais remotos do reino. Quando se sentia
fatigada, a rainha estalava os dedos, e então as borboletas cobriam-na
por inteiro, como uma cortina viva da mais pura seda, e ela,
desaparecendo da vista dos presentes, reaparecia onde bem entendesse, a
várias milhas de distância, ou, então, no mesmo lugar, mas alguns dias
antes, ou alguns dias depois.
Cadornega, que falava quimbundo com a elegância de um legítimo filho
da terra, viria a tornar-se amigo de um destes domadores de borboletas,
um homem muito velho, chamado Mbaxi. É provável que o velho Mbaxi tenha
iniciado o ex-português, nos mistérios da criação e adestramento das
borboletas
Cadornega deixa entender isso mesmo quando, na sua Relação dos Prodígios que Vi em Angola,
conta das viagens que tem feito pelo interior de Angola, estando certa
manhã em Luanda e na seguinte na Muxima, povoação a vários dias de
jornada ao lombo de um boi-cavalo. Mais significativo é o que nos diz
nas últimas linhas do seu manuscrito, antecipando-se em 268 anos a
Albert Einstein: “Não é o tempo senão um embuste engenhoso que o Senhor
Deus criou para nos iludir, pois não pode a mente humana conceber a
verdade pavorosa de não haver passado que passe nem futuro que não
exista neste preciso instante.”
António de Oliveira Cadornega morreu em 1690. Ou melhor, deixou de
ser visto. Um dia a esposa acordou e não o encontrou em casa. Em toda a
cidade, que era então muito pequena, ninguém sabia dele.
Há poucos meses, na estrada que vai do Bailundo para o Bié, assisti a
um redemoínho de borboletas. Eram borboletas amarelas, com pelo menos
25 centímetros de envergadura, e revolteavam no meio da estrada,
brilhando ao sol rasante da tarde. Parei o carro. Vi (ou julguei ver) um
vulto esquivo que dançava, meio escondido entre o fervente fulgor
amarelo. Naquele instante, tive a certeza de que era o meu escritor
favorito do século XVII. Ainda hoje tenho.
* Escritor angolano
IN "VISÃO"
10/04/20
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