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Contra o realismo televisivo
Que tipo de realismo domina hoje o espaço televisivo? A pergunta pode levar-nos a repensar muitas linguagens, desde o jornalismo à reality TV.
Porque é que a maioria dos intelectuais portugueses abandonou o campo de reflexão sobre a televisão?
Bem
sei que a simples formulação da pergunta atrai os mais agressivos
sectarismos (aliás, empolados por essa ausência de pensamento). Assim, é
difícil, porventura impossível, relembrar a urgência de reflexão sobre a
contaminação populista do espaço televisivo, inseparável de uma
metódica degradação dos mais primordiais padrões jornalísticos. Mas é
fácil, é mesmo comum, manter em circulação a ideia (?) segundo a qual os
intelectuais demonizam automaticamente a televisão, toda a televisão.
Será
preciso repetir que, com os seus infinitos contrastes e contradições, a
paisagem televisiva existe como elemento visceral de todas as nossas
vivências, desde as convulsões da cena política à definição da
intimidade? E será que alguém duvida que, nas suas expressões mais
nobres, em particular no domínio da ficção, a televisão contemporânea
contém propostas e experiências absolutamente fascinantes?
O certo é que quase ninguém reformula uma pergunta nuclear que, de
uma maneira ou de outra, tem acompanhado a história da televisão. É uma
pergunta herdada do universo cinematográfico: através das imagens (e dos
sons) da televisão, como é que vemos, compreendemos e avaliamos o mundo
à nossa volta?
Em boa verdade, a pergunta tornou-se frágil e até
equívoca, porque cega à própria contaminação televisiva de toda a nossa
existência. Desde a mais básica informação (as conferências de imprensa
dos políticos proferidas a pensar no horário nobre) à formatação da vida
sexual (os horrores quotidianos da reality TV), a televisão não é o espelho de uma qualquer realidade - é essa realidade transformada em elemento virtual do mundo material.
O
calendário das efemérides pode ajudar-nos a pensar um pouco da
complexidade que tudo isto envolve. Assim, revejo imagens de uma
obra-prima do cinema americano à beira de comemorar 50 anos de
existência: Faces, de John Cassavetes (disponível no mercado de DVD com o título Rostos).
E sinto-me especialmente tocado pela cumplicidade muito física de
Cassavetes com os seus atores: desde logo a sua mulher, Gena Rowlands, e
ainda John Marley, Lynn Carlin, Seymour Cassel, etc.
A visão de Cassavetes não é estranha a uma certa sensibilidade
televisiva dos anos 1960/70, em particular através da utilização
obsessiva do grande plano, indissociável da agilidade de câmaras mais
pequenas e leves que, na época, transfiguraram todas as formas de
filmagem. Ao mesmo tempo, revendo Faces e comparando-o com
algumas linguagens atuais de abordagem da intimidade em televisão,
deparamos com uma fundamental diferença de atitude: para Cassavetes, o
realismo é a arte de não abdicar da irredutibilidade do ser humano; no
espaço telenovelesco ou jornalístico dos nossos dias, o realismo foi
reduzido a um exercício de esvaziamento dos valores humanistas,
promovendo a obscenidade voyeurista a regra compulsiva.
Que tudo
isso está a matar, por dentro, o próprio prazer de fazer jornalismo, eis
o que todos sabemos. O que, aparentemente, não queremos saber é que,
por causa disso, o leitor/espectador sensível a estas questões está a
distanciar-se da própria oferta jornalística. Utopicamente, poderíamos
celebrar o génio de Cassavetes mostrando Faces em horário
nobre. Como isso se tornou impossível, talvez valha a pena não
abdicarmos da ideia de que é possível ser realista sem desistir de um
valor que aprendemos nas nossas origens católicas: a compaixão.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
19/11/18
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