Cansados de blogs bem comportados feitos por gente simples, amante da natureza e blá,blá,blá, decidimos parir este blog do non sense.Excluíremos sempre a grosseria e a calúnia, o calão a preceito, o picante serão ingredientes da criatividade. O resto... é um regalo
20/08/2013
NICOLAU DO VALE PAIS
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IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
16/08/13
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Evangelho
segundo as Cigarras
(uma fábula europeia)
O Criador andava assustado com a sua criação.
Há muitos, muitos anos atrás, quando os
animais falavam, as cigarras viviam iludidas na partilha de um
território comum com os outros bichos. Incluindo as obstinadas formigas.
As formigas tinham um natural ascendente sobre o resto da bicharada,
sobretudo por serem em grande número e ocuparem uma parte substancial do
território partilhado, podendo mesmo ser intimidadoras. Era como se
toda a floresta tivesse sido feita para elas, cheia de matérias-primas
que laboriosamente comerciavam, transformavam e tornavam a comerciar com
os outros bichos. Foi assim que as formigas convenceram as cigarras a
venderem os seus instrumentos, com que tocavam música e ganhavam a vida,
e a comprarem os produtos da labuta obstinada das formiguinhas. Muito
industriosas, estas perceberam que tinham de escoar o que produziam. E,
depois, produzir mais para escoar ainda mais e mais - inclusive,
produzir dinheiro que as cigarras não tinham, para que pudessem comprar
mais.
Nos primeiros tempos, as cigarras e as formigas entenderam-se - para
vaidade das suas chefias e desconfiança das massas - e parecia que havia
mesmo Economia na floresta. Mas depois a coisa complicou-se; rebentaram
os armazéns de provisões das formigas - parece que algumas delas eram
tão ociosas e frívolas quanto se julga que as cigarras são. Foi o pânico
no formigueiro; "e agora"?
A rainha mandou acalmar as obreiras; "não se preocupem", disse.
"Vamos resolver isto a bem ou a mal". "As cigarras" - achava ela - "têm a
memória curta e estão desorganizadas por nós; são por isso fáceis de
enganar. Sob ameaça de esburacarmos as fundações que outrora
construímos, vamos coagi-las a tapar os buracos que deixámos com as
decisões que tomámos". E foi assim que as cigarras viram as asas
cortadas para que, às costas, pudessem transportar até aos formigueiros o
pouco com que tinham ficado antes desta tragédia. Foi tal a ironia, que
as pobres cigarras se transformaram num paradigma negro da moral da
formiga: queriam, de facto, trabalhar, mas já não podiam. O tempo
passou, lento e doloroso para as cigarras, doce para as formigas, que
cantavam e bailavam com arroz abaixo dos preços de mercado para uns,
inflacionado e especulado para outros. Mas foi assim que uma parte dos
responsáveis salvou toda a floresta.
De tudo isto sabia o Criador. Pensou numa solução demasiado radical,
tipo um outro dilúvio. Mas depois, cansado da violência e dos ajustes
vingativos - céus, o que seria das formigas se outrora não tivessem
sido elas também sujeitas à universal clemência?... - parou para
pensar. Pensar se a narrativa de que os seus arcanjos lhe traziam novas
todos os dias seria, de facto, a história das cigarras e das formigas,
ou, vendo melhor, a história das suas irresponsáveis e venais
lideranças; afinal o dinheiro, o Criador sabia-o, é coisa do Diabo. A
ficção essa, é coisa dos bichos, e uma das suas mais eficazes maneiras
de chegar à verdade. O Criador deu-lhes, então, memória, para os
proteger e criatividade para os encorajar.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
16/08/13
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